segunda-feira, 18 de julho de 2011

A Montanha Mágica, p. 74-5

"Mas estávamos falando do senhor. Engenheiro naval! Sabe o senhor que está subindo no meu conceito? De repente se me afigura como o representante de todo um universo de trabalho e gênio prático.

- Ora, ora, Sr. Settembrini, por enquanto sou apenas um estudante e me acho bem no início.

- Pois é, e o primeiro passo custa. Como aliás é difícil todo trabalho que merece este nome, não é?

- Difícil como o diabo - disse Hans Castorp, e essas palavras lhe saíram do fundo do coração.

Rapidamente Settembrini franziu as sobrancelhas.

- O senhor invoca o próprio Diabo para confirmar isso? - perguntou. - Satã em pessoa? Sabe talvez que meu grande mestre lhe dedicou um hino?

- Como? - admirou-se Hans Castorp. - Ao Diabo?

- Em carne e osso. De vez em quando cantam esse hino na minha pátria, por ocasião de certas solenidades: O salute, o Satana, o Ribellione, o forza vindice della Ragione... Uma maravilha, esse cântico! Contudo parece-me pouco provável que o senhor tenha pensado justamente nesse Diabo, que está em ótimas relações com o trabalho. O Diabo ao qual se referiu o senhor, e que abomina o trabalho, porque tem motivos para temê-lo, deve ser aquele outro do qual dizem que com ele não se brinca...

Tudo isso causou uma impressão estranha ao bom Hans Castorp. Não compreendia o italiano, e o resto do que dizia Settembrini tampouco lhe inspirava muita confiança. Essas coisas cheiravam a sermão dominical, ainda que proferidas num tom de palestra leve e jocosa. Hans Castorp olhou o primo, que baixou os olhos e depois disse:

- O senhor toma as minhas palavras muito ao pé da letra, Sr. Settembrini. O que eu disse do Diabo era apenas uma maneira de falar e nada mais.
- Deve haver uma pessoa com espírito - disse Settembrini, mirando o ar com uma expressão melancólica. Porém, reanimando-se imediatamente, e dando à conversa um caráter jovial, gracioso e conciliador, continuou:

- Seja como for, posso deduzir, com razão, das suas palavras que o senhor escolheu uma profissão tão cansativa quanto honrosa. Meu Deus, eu sou humanista, sou um homo humanus, e nada entendo dessas coisas engenhosas, por mais sincero que seja o respeito que lhes voto. Mas imagino que a teoria da sua disciplina deve requerer um cérebro claro, penetrante; e a sua prática, um homem na genuína acepção da palavra. Não é assim?

- Exatamente, é assim mesmo. Não posso deixar de concordar com o senhor - respondeu Hans Castorp, empenhando-se, malgrado seu, em falar com alguma eloquência. - É enorme o que hoje em dia se exige de nós. Nem é bom pensar na extensão dessas exigências, pois do contrário arriscaríamos perder a coragem. Sim, senhor, não é brinquedo. E quando uma pessoa não tem uma constituição muito robusta... Olhe, eu estou aqui apenas devisita, mas também não sou dos mais resistentes. Seria mentira se dissesse que me dou perfeitamente bem com o trabalho. Pelo contrário, devo confessar que o esforço me esgota bastante. No fundo, só me sinto à vontade quando nada faço..." (MANN, 1952, p. 74-5).


MANN, T. A Montanha Mágica. 1. ed. Trad. Herbert Caro. São Paulo, SP: Círculo do Livro, 1952.

A Montanha Mágica, p. 72-3

"Hans Castorp riu-se, cheio de surpresa, e ao mesmo tempo procurou recordar quem eram Minos e Radamanto. Respondeu então:

- Desculpe, mas o senhor está enganado, Sr. Septem...

- Settembrini - corrigiu o italiano com nitidez e presteza, acrescentando uma reverência humorística.

- Sr. Settembrini, perdão! Mas, como já disse, há um equívoco da sua parte. Não estou doente. Faço apenas uma visita de algumas semanas ao meu primo Joachim e quero aproveitar esta ocasião para descansar um pouquinho...

- Vejam só! Então não é dos nossos. Goza boa saúde, está aqui apenas de passagem, como Ulisses no reino das sombras? Que audácia descer até estas profundezas, onde os mortos levam uma existência irreal, desprovida de sentido...

- Até estas profundezas, Sr. Settembrini? Não diga isso, que eu subi uns cinco mil pés para chegar aqui...

- É o que o senhor pensa. Palavra de honra, trata-se apenas de uma ilusão - disse o italiano com um gesto enérgico da mão. - Somos umas criaturas que caíram muito baixo; não é mesmo, tenente? - E com isso se voltou para Joachim, que se regozijou bastante ao ouvir o título, mas, esforçando-se por dissimular a sua satisfação, respondeu circunspectamente:

- Pode ser que a gente se tenha apatetado aqui. Mas, afinal de contas, há meios de se regenerar...

- Pois é, acho também que o senhor tem capacidade para isso; é um homem decente - disse Settembrini. - Sim, sim, sim! - acrescentou, sibilando três vezes o 's' e fazendo estalar a língua outras tantas vezes contra o céu da boca. Depois, dirigindo-se a Hans Castorp, exclamou: - Vejam só, vejam só, vejam só! - com a mesma pronúncia do 's', enquanto encarava o novato com tamanha intensidade, que seus olhos assumiam expressão fixa e cega. Por fim, reavivando o olhar, prosseguiu:

- De modo que o senhor veio voluntariamente a estas alturas, para visitar esta nossa gente decaída! Quer nos conceder por algum tempo o prazer da sua companhia... Ora, é muito gentil da sua parte. E quanto tempo tenciona ficar aqui? Sou indiscreto. Mas eu gostaria de conhecer o prazo que uma pessoa se fixa a si própria, quando se decide livremente, sem depender da vontade de Radamanto.
- Três semanas - respondeu Hans Castorp, com um orgulho um tanto fátuo, ao notar que despertava inveja.

- O Dio! Três semanas! Ouviu, tenente? Não lhe parece mesmo um tanto atrevida essa maneira de dizer: 'Vou passar aqui três semanas e depois partirei'? Fique sabendo, meu senhor, que nós aqui ignoramos uma medida de tempo que se chama semana. Para nós, a menor unidade é o mês. Fazemos as nossas contas em grande estilo, como é o privilégio das sombras. Temos ainda outros privilégios, e todos eles são desse tipo." (MANN, 1952, p. 72-3).


MANN, T. A Montanha Mágica. 1. ed. Trad. Herbert Caro. São Paulo, SP: Círculo do Livro, 1952.

A Montanha Mágica, p. 69-70

"- E você me conta essa história só agora? - disse Hans Castorp, depois de um silêncio. - Não compreendo por que deixou de fazê-lo ontem à noite... Mas, meu Deus, ela devia estar muito forte ainda para se defender desse jeito. Para isso precisa-se de muita força. Só deveriam buscar o padre quando uma pessoa estivesse muito fraca.

- Estava fraca, sim - replicou Joachim. - Ora, não me faltam histórias para contar. O difícil é fazer a primeira seleção... Bem, ela estava mesmo muito fraca. O que lhe dava tanta força era unicamente o medo. Sentia um pavor horrível, porque percebia que estava às portas da morte. Era uma mocinha, afinal, e isso justifica até certo ponto a sua conduta. Mas há também homens que se comportam assim, o que revela uma covardia imperdoável. O Behrens sabe, aliás, como lidar com esses tipos. Ele encontra o tom adequado.

- Que tom? - perguntou Hans Castorp, franzindo as sombrancelhas.

- 'Não faça tanta fita!', costuma dizer ele - respondeu Joachim. - Foi pelo menos o que disse recentemente numa ocasião dessas. Quem nos contou a história foi a enfermeira-chefe, que estava lá para segurar o agonizante.

Era um daqueles que no leito de morte ainda fazem uma cena pavorosa e absolutamente não querem morrer. Então o Behrens ralhou com ele. 'Deixe de fazer tanta fita!', disse, e o paciente logo ficou quietinho e morreu com toda a calma.
Hans Castorp deu uma palmada na coxa, e reclinando-se no encosto do banco dirigiu os olhos para o céu:

- Escute, essa é muito forte! - exclamou. - Ralhar com o doente e dizer-lhe simplesmente: 'Não faça tanta fita!' A um moribundo! É demais. Afinal de contas, um moribundo merece algum respeito. Não se pode dizer-lhe sem mais aquela... Parece-me que um moribundo é, de certo modo, sagrado.

- Não digo o contrário - concedeu Joachim. - Mas quando alguém se comporta covardemente...

- Não, senhor! - insistiu Hans Castorp, com uma violência desproporcional à oposição que se lhe fazia. - Ninguém me tirará da cabeça que um moribundo é mais nobre do que um indivíduo qualquer que passeia e ri e ganha dinheiro e enche a pança. Não é possível... - Sua voz vacilou estranhamente. - Não é possível que se trate assim... - E de súbito suas palavras se afogaram numa gargalhada que se apoderou dele e o dominou; o mesmo riso da véspera, um riso que lhe brotava das entranhas, lhe sacudia todo o corpo e não tinha fim, que lhe cerrou os olhos e extraiu lágrimas por entre as pálpebras comprimidas.

- Psiu! - fez Joachim de repente. - Cale-se! - cochichou, dando uma cotovelada no primo, que ainda se ria a bandeiras despregadas. Hans Castorp ergueu os olhos, através das lágrimas.

Vindo da esquerda, aproximava-se um forasteiro, um senhor baixinho, moreno, com bigode preto elegantemente torcido, e com calças de xadrez claro. Trocou com Joachim um 'Bom dia!' - sua saudação era nítida e sonora - e deteve-se à frente dos dois jovens, numa atitude graciosa, cruzando os pés e apoiando-se na bengala." (MANN, 1952, p. 69-70).


MANN, T. A Montanha Mágica. 1. ed. Trad. Herbert Caro. São Paulo, SP: Círculo do Livro, 1952.

A Montanha Mágica, p. 63-6

"Um grupo de pensionistas de ambos os sexos vinha se aproximando dele. Hans Castorp já os vira trilhar o caminho plano a meia altura da encosta. Agora se achavam na descida, vindo a seu encontro, a passo barulhento, numa confusão de vozes. Eram seis ou sete pessoas de diferentes idades, umas muito jovens, outras um tanto avançadas em anos. Hans Castorp contemplou-as, com a cabeça inclinada para o lado, enquanto seus pensamentos se ocupavam com Joachim. Andavam sem chapéu, tostados pelo sol. As senhoras vestiam pulôveres de cor, ao passo que os homens, na sua maioria, iam sem sobretudo e mesmo sem bengala, como quem sai sem cerimônias, com as mãos nos bolsos, para dar uma voltinha. Achavam-se na descida, que não exige grande esforço muscular, mas apenas um ligeiro refreamento, por meio das pernas fincadas no chão, para evitar o excesso de velocidade e o consequente tropeção. Assim, seu modo de andar tinha algo de alado e leve, que se comunicava às suas fisionomias e à sua atitude em geral e inspirava a quem os via o desejo de fazer parte do grupo.

E já se encontravam próximos de Hans Castorp, que se pôs a examinar-lhes os rostos. Nem todos estavam queimados pelo sol. Duas senhoras destacavam-se até pela palidez, uma magrinha como um caniço, com uma tez de marfim, e a outra, mais baixa, gorducha, com a cara salpicada de lunares. Todos o fitaram com o mesmo sorriso petulante. Uma mocinha alta, de suéter verde, com cabelos desgrenhados e uns estúpidos olhos semicerrados, passou tão perto de Hans Castorp que quase lhe roçou o braço. E ao mesmo tempo assobiava... Mas, que coisa louca! Assobiava, porém não o fazia com a boca. Nem sequer contraía os lábios; pelo contrário, mantinha-os firmemente cerrados. Havia qualquer coisa que assobiava no seu interior, enquanto ela encarava Hans Castorp, com uma mirada tola dos olhos entreabertos. Era um assobio sumamente desagradável, agudo, penetrante e todavia oco, prolongado, e que pelo fim baixava de tom, assim como fazem aqueles porquinhos de borracha que se compram nas feiras e que deixam escapar, com um som gemebundo, o ar insuflado.Tal era o ruído que partia inexplicavelmente do peito da jovem enquanto ela se afastava com o resto do grupo.

Hans Castorp quedou-se imóvel, olhando para longe. Então se virou bruscamente, percebendo que esse assobio atroz fora um trote, uma brincadeira de antemão preparada, pois viu pelos movimentos de ombros que aquela gente se ria dele. Um rapaz atarracado e beiçudo, que, para andar com as mãos nos bolsos da calça, levantava o paletó de uma forma bastante inconveniente, virou-se descaradamente para ele e riu... Nesse meio tempo, Joachim se aproximara. Passou pelo grupo, comprimentando-o na sua maneira militar, fazendo uma quase continência, e inclinando-se, de tacões unidos. Em seguida, voltou-se para o primo com um olhar interrogador.

- Que é que há com você? - perguntou.

- Ela assobiou! - respondeu Hans Castorp. - Assobiou com a barriga, ao passar junto de mim. Tenha a bondade de me explicar como isso se faz.

- Ora! - exclamou Joachim, com uma risada desdenhosa. - Não foi com a barriga. Bobagem! É a Kleefeld, Hermine Kleefeld. Assobia com o pneumotórax.
- Com quê? - gritou Hans Castorp, sumamente excitado, sem, no entanto, saber em que sentido: vacilava entre o riso e o choro quando acrescentou: - Afinal de contas, não se pode esperar que eu compreenda a gíria de vocês.

- Vamos adiante - disse Joachim. - Posso lhe explicar tudo enquanto a gente passeia. Até parece que você criou raízes. Trata-se de um negócio de cirurgia, compreende? É uma invenção que frequentemente executam aqui. O Behrens tem grande prática nisso... Quando um pulmão está muito atacado, e o outro está bom, ou pelo menos relativamente bom, dispensa-se o lado enfermo por algum tempo de qualquer atividade, a fim de poupá-lo. Quer dizer, dão um talho nesta região, no flanco, não sei precisamente onde, mas o Behrens é um mestre nessas coisas. E depois enchem a gente de gás, de nitrogênio, sabe?, e assim o pulmão carcomido é posto fora de ação. É claro que o gás introduzido no corpo não se conserva indefinidamente. Precisa ser renovado de quinze em quinze dias, mais ou menos. É a mesma coisa que reencher um balão, compreende? Ao cabo de um ano ou mais, se tudo for bem, pode o pulmão curar-se graças a esse completo descanso. Mas, nem sempre termina assim, e parece até que a intervenção é bastante arriscada. Contudo, dizem que já foram obtidos muito bons resultados com esse pneumotórax. Toda aquela turma que você acaba de encontrar o tem. Havia lá a Sra. Iltis, aquela que tem os lunares, sabe? E a Srta. Levi, uma magrinha, se você se lembra; ela ficou de cama por muitíssimo tempo. Eles formaram um grupo, pois essa coisa do pneumotórax estabelece uma relação natural entre as pessoas. Chamam-se entre si a 'Sociedade Meio-Pulmão'; são conhecidos por esse nome. Mas o orgulho da sociedade é a Hermine Kleefeld, porque sabe assobiar com o pneumotórax. É um talento especial que muito poucos têm. Como ela consegue fazê-lo, não lhe posso explicar; nem ela mesma sabe explicá-lo claramente. Depois de ter andado depressa, é capaz de assobiar interiormente, e disso se aproveita para assustar as pessoas, sobretudo os doentes recém-chegados. Acho, aliás, que com isso perde nitrogênio, pois precisa reabastecer-se de oito em oito dias.

Agora, Hans Castorp desatou a rir. No decorrer das explicações de Joachim, a sua excitação tomara decididamente o rumo da hilaridade. Enquanto prosseguia no caminho, cobrindo os olhos com a mão e inclinando-se para a frente, sentiu os ombros sacudidos por uma rápida sucessão de risinhos silenciosos.

- É uma sociedade registrada? - perguntou, numa voz embargada, que, à força de conter o riso, soava chorona e levemente queixosa. - Tem estatutos? Que pena você não ser sócio dela. Olhe, nesse caso poderiam admitir-me como sócio honorário ou como... visitante. Você deveria pedir ao Behrens que lhe ponha parte dos pulmões fora de ação. Quem sabe se você não conseguiria também assobiar, se se esforçasse um pouco? Afinal de contas, isto se aprende... Em todo caso, é a coisa mais engraçada que já vi - acrescentou, com um profundo suspiro. - Escute, não me leve a mal que eu fale desse jeito, mas eles mesmos andam tão bem-humorados, esses seus amigos pneumáticos. Quem os vê caminhando assim, alegremente... E quando se pensa que essa era a 'Sociedade Meio-Pulmão' 'Fiu-u', sibilou ela... Que pequena! Mas isso é pura traquinice. Por que estão tão alegres, pode me explicar?

Joachim esforçou-se por encontrar uma resposta. - Meu Deus - disse enfim -, eles estão tão livres... quero dizer, é gente moça, e o tempo não significa nada para eles. E quem sabe se não vão morrer! Para que então ficar com a cara triste? Às vezes me vem a idéia de que essa coisa da doença e da morte no fundo não é séria; é antes uma espécie de relaxamento. A seriedade existe somente na vida lá de baixo. Creio que você também compreenderá isso quando estiver mais tempo aqui em cima." (MANN, 1952, p. 63-6).


MANN, T. A Montanha Mágica. 1. ed. Trad. Herbert Caro. São Paulo, SP: Círculo do Livro, 1952.

quinta-feira, 7 de julho de 2011

A Montanha Mágica, p. 61-2

"- Homem muito simpático - repetiu Hans Castorp. - Tem um jeito tão desembaraçado de falar! Dá gosto ouvilo. Essa do charuto de mercúrio para designar o termômetro é mesmo muito boa. Compreendi logo... Mas agora vou acender um charuto de verdade - disse, estacando. - Já não aguento mais sem ele. Desde o meio-dia de ontem que não fumo nada que preste. Com licença! - Tirou da charuteira de couro, enfeitada com as suas iniciais em prata, um Maria Mancini, belo exemplar da camada superior da caixa, achatado em uma face, como ele gostava especialmente. Cortou a ponta com uma pequena guilhotina de corte angular que trazia na corrente do relógio. Acendeu o isqueiro, pôs fogo ao charuto bastante comprido, de ponta vertical, e tirou algumas baforadas gostosas. - Muito bem - disse então -, quanto a mim, podemos continuar o passeio. Você não fuma, claro, devido àquele excesso de entusiasmo.

- Nunca fumei - respondeu Joachim. - Para que fumaria justamente aqui?
- Não compreendo você - disse Hans Castorp. - Simplesmente não compreendo como alguém possa viver sem fumar. Priva-se, por assim dizer, do que há de melhor na vida. Em todo caso, escapa-lhe um prazer magnífico. Quando acordo pela manhã, já me alegro com a idéia de poder fumar durante o dia, e quando tomo uma refeição, já penso em fumar depois. Sim, senhor, posso dizer, com um pouco de exagero, que como apenas para ter uma oportunidade de fumar. Um dia sem tabaco seria para mim o cúmulo da insipidez, um dia totalmente vazio, sem o mínimo atrativo, e se eu qualquer dia despertasse sabendo que não poderia fumar, acho que não teria coragem nem para me levantar. Francamente ficaria na cama. Olhe, quando a gente fuma um charuto que puxa bem... claro que não deve estar furado, o que constitui um defeito muito desagradável... quero dizer, quando a gente fuma um charuto bom, sente-se garantido e nada lhe pode acontecer. É a mesma coisa que deixar-se ficar deitado numa praia; fica-se deitado, não é?, não se tem necessidade de nada, nem de trabalho nem de distrações... E fuma-se no mundo inteiro, graças a Deus! Ao que me parece, não existe nenhum lugar onde esse prazer seja desconhecido, por mais longe que nos arraste o destino. Até os exploradores das regiões polares levam fumo em abundância, para que possam aguentar os esforços das suas viagens. Isto sempre me pareceu simpático. Pode acontecer que uma pessoa ande muito mal... Suponhamos, por exemplo, que eu me encontre num estado lamentável... mas, quando tiver o meu charuto, aguentarei firme, disso tenho certeza. O charuto me faria vencer qualquer obstáculo.

- Contudo, é um sinal de fraqueza - objetou Joachim - depender do fumo a esse ponto. Behrens tem toda a razão: você é um paisano. Ele disse isso em sentido elogioso, mas você é mesmo um paisano incorrigível. Mas, afinal de contas, anda bem de saúde e pode fazer o que quiser - acrescentou, e seus olhos assumiram uma expressão cansada." (MANN, 1952, p. 61-2).


MANN, T. A Montanha Mágica. 1. ed. Trad. Herbert Caro. São Paulo, SP: Círculo do Livro, 1952.

quarta-feira, 6 de julho de 2011

A Montanha Mágica, p. 57-8

"Receara um pouco receber impressões horrorosas, mas viu-se logrado; o ambiente nessa sala parecia bastante animado. Absolutamente não despertava a idéia de um lugar de sofrimentos. Jovens de ambos os sexos, tostados pelo sol, entravam cantarolando, conversavam com as criadas e atacavam a comida com vigoroso apetite. Havia também pessoas mais idosas: casais, uma família inteira, com crianças, que falavam russo, e até uns adolescentes. As mulheres vestiam, quase todas, casaquinhos muito justos, de lã ou seda, suéteres, como os chamavam, ora brancos ora à fantasia, com golas voltadas para fora e bolsos laterais. Era bonito ver como andavam ou palestravam com as mãos enterradas nesses bolsos. Em algumas mesas, eram exibidas fotografias, sem dúvida instantâneos recentes, tirados pelos próprios pensionistas. Numa outra mesa, trocavam selos. Falavam do tempo, de como haviam dormido, e da temperatura que tinham de manhã, tirada na boca. A maioria mostrava-se alegre, provavelmente sem motivo particular, apenas por não terem preocupações imediatas e estarem reunidos num grupo numeroso. Verdade é que alguns se achavam sentados à mesa, com a cabeça apoiada nas mãos e o olhar cravado à sua frente. Mas os outros deixavam-nos cismar, e ninguém lhes prestava atenção.

De repente, Hans Castorp sobressaltou-se, irritado e como que ferido. Uma porta acabava de bater violentamente, a porta da esquerda, que dava para o vestíbulo. Escapara às mãos de alguém, ou foi mesmo fechada com estrondo. Era esse um ruído que Castorp abominava e que sempre o enfurecia. Talvez se baseasse essa animosidade na sua educação, talvez proviesse de uma idiossincrasia inata; em todo caso ele detestava as portas cerradas com estrondo e tinha vontade de esbofetear a quem cometesse esse crime na sua presença. No caso particular, tratava-se, além do mais, de uma porta envidraçada, o que, pelo tinir estridente, aumentava o choque. "Barbaridade!", disse Hans Castorp de si para si, todo revoltado, "que falta de educação!" Mas, como no mesmo instante a costureira lhe dirigisse a palavra, não teve tempo para descobrir o culpado. Contudo assomaram-lhe algumas rugas entre as sobrancelhas louras enquanto respondia à interlocutora." (MANN, 1952, p. 57-8).


MANN, T. A Montanha Mágica. 1. ed. Trad. Herbert Caro. São Paulo, SP: Círculo do Livro, 1952.
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