sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Introdução: Crime e castigo V

Retorno do exílio


"Dostoiévski volta com uma mulher e um enteado. Na estação ferroviária, apenas um antigo amigo e seu irmão Mikhail. Ele, que tinha sido reconhecido como um novo talento, teria de recomeçar sua vida de escritor - era essa sua vocação. Trazia na bagagem um conhecimento aprofundado do homem, de suas misérias morais. Além disso, outra experiência o marcaria para sempre: começou a ter crises de epilepsia ainda no presídio. E elas o acompanharam para o resto da vida.
Nesse retorno, publicou o romance-folhetim Humilhados e ofendidos; e Recordação da casa dos mortos, que acabou por restaurar sua fama entre os literatos e leitores russos. Com seu irmão Mikhail fundou a revista O Tempo, na qual exerceria o papel de editor e colaborador, e divulgaria suas ideias, como a defesa de uma cultura russa própria, distante dos modelos prontos que chegavam da Europa. Na revista, eles também publicavam traduções, artigos e folhetins - 'Dostoiévski estava sempre procurando matérias que pudessem interessar, instruir e cativar seus assinantes regulares', conta Joseph Frank em Os efeitos da libertação, terceiro volume da biografia sobre o escritor.

A revista, porém, acabou sendo proibida por questões políticas. Mas foi nas suas páginas que ele publicou um conto da jovem Apolinária Suslova, que era 22 anos mais jovem que ele e logo se tornaria sua amante. Com ela, empreendeu uma viagem pela Europa. Ela seguiu antes para Paris, onde os dois se encontrariam. Mas Dostoiévski demorou mais do que o previsto para chegar. O fato é que parou em Wiesbaden para jogar na roleta - ele tinha tido sua primeira experiência no jogo um ano antes. A passagem é digna de nota, pois está na base de seu romance Um jogador. E essa também seria a sua segunda doença séria: o vício da jogatina.

Em 1864, Maria Dmítrievna, que já estava bastante debilitada, sendo cuidada pela família dela durante as ausências do escritor, morre, depois de uma lenta agonia. Nesse ano, outra perda terrível: seu irmão e parceiro de toda a vida, Mikhail, morre de repente. Eles tinham acabado de criar uma nova revista, Época, que substituiria O Tempo. Agora, o escritor encontrava-se, como ele mesmo disse, sozinho e 'simplesmente aterrorizado': 'Um único golpe partiu a minha vida inteira em duas. Numa metade, que eu já atravessara, estava tudo aquilo pelo que vivi, e na outra metade, ainda desconhecida, tudo era estranho e novo, e não havia um único coração que pudesse substituir aqueles dois', escreveu a um amigo.

É nessa segunda metade que surgirão aqueles que são os mais impressionantes romances da literatura mundial - Dostoiévski publicará a partir daí: Memórias do subsolo (1864), Crime e castigo (1866), Um jogador (1866), O idiota (1868), O eterno marido (1870), Os demônios (1871), O adolescente (1875) e Os irmãos Karamázov (1880), além de seu Diário de um escritor (1873-1881). Nessas obras, circula a alma de personagens atormentados, perseguidos no íntimo deles mesmos, marcados pelo niilismo, que o escritor deplorava, vivendo entre o bem e o mal e torturados por questões morais. Em resumo, o tipo que a crítica passou a chamar de 'o homem do subsolo' - esse tipo de figura humana que ele pintou com tintas ácidas e cruéis.

Nessa etapa final da vida, ele contou com o apoio de Ana Grigórievna (Snítkina) Dostoiévskaia, sua última esposa e também estenógrafa, para quem ele ditou Um jogador durante 26 dias, premido por dívidas. A ela, o autor dedicou seu genial Os irmãos Karamázov. Dostoiévski, que morreu em 28 de janeiro de 1881, respeitado e adorado pelos russos, foi um dos maiores paisagistas da alma humana. Ao comentar os manuscritos do escritor, Carpeaux conta que ele 'via primeiramente os problemas e depois as personagens'. 'No começo, ele emenda mais do que escreve, e as margens são cheias de figuras, representando catedrais, demônios, anjos, que simbolizam seus problemas. Depois, a personificação começa; o texto corre mais ligeiro, e os desenhos simbólicos se transformam em retratos imaginários; a comparação permite estabelecer as preferências do poeta, e esta comparação prova aquilo que a interpretação dos textos deixava prever: as preferências do poeta são para seus inimigos ideológicos'. Como ele ainda diz, parece que Dostoiévski criou seus 'anticristos - um Raskólnikov, um Kirillov, um Ivan Karamázov - com grande simpatia, e que estes constituem, às vezes, os intérpretes do escritor'." (DOSTOIÉVSKI, 2010, p. 385-88).


DOSTOIÉVSKI, F. Crime e castigo - Vol. I. Trad. Rosário Fusco. São Paulo, SP: Abril, 2010.

Introdução: Crime e castigo IV

Vida de escritor


 "Não foi um momento fácil para Fiódor, que tinha sido reprovado em algumas matérias na Academia e escrevera ao pai pedindo dinheiro para continuar levando a vida longe de casa. Ele se sentiu 'abatido e esmagado pela culpa', segundo Frank, quando soube da tragédia. Pelas informações que Freud havia obtido, dataria desse período a primeira crise de epilepsia de Dostoiévski; já o biógrafo lembra que não há dados que a comprovem - outros relatos sugerem que o primeiro ataque aconteceu muito tempo depois, na Sibéria.

Agora, sem a tutela do pai e com pouco dinheiro para viver, Dostoiévski aproveita para se aprofundar em sua paixão pela literatura, mergulhando na vida literária de São Petersburgo, fazendo novos amigos e escrevendo, em seu caderno, o rascunho de Gente pobre, romance de estreia do escritor, publicado em 1846. Sua vida passou a ser voltada para os textos literários. É a época em que traduz Eugénie Grandet, de Balzac, que seria publicado em russo em 1844.

O primeiro passo estava dado. Pouco depois, consegue terminar seu romance de estreia, cujos manuscritos logo chegaram às mãos do importante crítico V. G. Belínski. Ele fica surpreso com o que lê. 'Não consigo largá-lo há quase dois dias. É um romance de principiante, um novo talento', disse a um colega. Neste romance, construído de forma epistolar  e que logo passou a ser bastante comentado, Dostoiévski já revelava seu interesse pelos humilhados e ofendidos, por aquela pobre gente de São Petersburgo.

O sucesso repentino possibilitou ao jovem viver apenas da literatura. Chegou a conseguir um adiantamento de um editor. Mas, como sempre, aquilo se tornou uma cilada. Para poder se manter, viu-se obrigado a escrever folhetins para jornais e revistas, gênero literário que estavam em alta na Rússia. Mas sua carreira, e sua vida, estavam prestes a dar uma guinada radical.

Publicou seu segundo romance, O duplo, que não recebeu a mesma acolhida do primeiro. Belínski o considerou psicológico demais. O escritor afasta-se do núcleo de escritores que se formou em torno do crítico e se isola. Por essa época, conheceu um rapazola com ideias socialistas, de 26 anos. Era Mikhail Butachévitch Petrachévski. Apesar de não aderir integralmente à ideologia do amigo, ele passa a comparecer às reuniões, todas às sextas-feiras, na casa deste, onde a conversa madrugava sobre diversos assuntos, principalmente política. Dostoiévski era um crítico feroz do regime de servidão na Rússia. O círculo de Petrachévski, com suas ideias avançadas, já vinha sendo vigiado pela polícia havia muito tempo. Certa noite, pouco depois de ir se deitar, por volta das quatro da madrugada, Fiódor foi acordado pelo chefe de polícia. Ele estava sendo acusado de conspirar contra o soberano russo, Nicolau I, e instigar uma revolução de camponeses contra a escravidão.

Dostoiévski foi preso e condenado à morte. Quando já se encontrava diante do pelotão de fuzilamento, sem nenhuma alternativa, o imperador comutou a pena e condenou os revoltosos a trabalhos forçados na Sibéria, por quatro anos - essa dura experiência seria relatada no romance autobiográfico Recordações da casa dos mortos. Foram quatro anos no presídio de Omsk, onde enfrentou todo tipo de humilhação, e pôde estudar de perto a 'moralidade profundamente arraigada dos camponeses', além de se deparar com o ódio dos presos comuns aos presos intelectuais, como ele.

Em 1854, é mandado para Semipalatinsk, onde é incorporado ao Sétimo Regimento do Corpo de Exército, como soldado-raso. Lá, conheceu Maria Dmítrievna Issáiev, que era casada, mas logo ficaria viúva. Foi uma grande paixão - e os dois se casariam, em 1857. Pouco tempo depois, morre Nicolau I, sucedido no trono por seu filho Alexandre II. Estava chegando ao fim o martírio do escritor, pois em breve Alexandre, que aboliu a servidão, lhe permitiria voltar para casa, e ele poderia enfim recomeçar sua vida em São Petersburgo." (DOSTOIÉVSKI, 2010, p. 382-84).


DOSTOIÉVSKI, F. Crime e castigo - Vol. I. Trad. Rosário Fusco. São Paulo, SP: Abril, 2010.

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Introdução: Crime e castigo III

O autor


"É sempre vertiginosa a leitura dos romances de Dostoiévski. Um crítico dizia que em sua ficção havia algo tanto do romance policial como também do romance de aventura. Esse crítico, um dos mais argutos que já passou pelo Brasil, chamava-se Otto Maria Carpeaux. A definição que ele fazia para Os irmãos Karamazóv vale perfeitamente bem para este também clássico Crime e castigo: 'Se todos os romances do russo parecem romances policiais, são de um investigador das almas que nos revela, além dos crimes perpetrados, os crimes virtuais que dormem em nós outros como possibilidades. E enquanto se trata de romances de aventuras, são as aventuras espirituais, das quais a última seria a própria redenção do gênero humano'.

'Investigador das almas' e 'aventuras espirituais': duas expressões que dizem muito sobre o universo ficcional que o escritor russo criou com grande genialidade nos meados do século XIX. Poucos autores foram tão fundo nessa investigação e conseguiram retirar do poço da alma humana tantas desventuras como o fez Dostoiévski. É de se lamentar, por exemplo, o destino do protagonista de Crime e castigo, esse Raskólnikov, um pobre diabo perambulando pelas ruas decadentes de São Petersburgo, com 'o povo se comprimindo entre os andaimes, montes de cal, tijolos espalhados pelos cantos e, dominando tudo, o mau cheiro característico, tão familiar aos habitantes de São Petersburgo, que não dispõem de meio para veranear'.

Dostoiévski conhecia bem a cidade - como também a alma cindida do homem moderno. Ele tinha todas as ruas esquadrinhadas em sua mente, conhecia cada beco, cada travessa, cada ponte sobre o Nievá desde a adolescência. Depois de ter passado a infância entre Moscou e a casa da família na região rural de Darovóie, o menino - impulsionado pelo pai, o doutor Mikhail Andrévich Dostoiévski - seguiu com seu irmão mais velho, Mikhail, para São Petersburgo, onde viveria grande parte de sua vida adulta.

Fiódor Mikháilovitch Dostoiévski - Fiéda, como lhe chamavam - nasceu, em 30 de outubro de 1821, em Moscou. Seu pai era médico no Hospital Marínski para os Pobres, no subúrbio da cidade, e a família morava em um apartamento cujas janelas davam para o pátio do hospital. Conta-se que seu pai vinha de uma nobre família rural lituana; no entanto, o próprio escritor chegou a dizer que não pertencia à pequena nobreza rual, como anota o crítico Joseph Frank em As sementes da revolta, que é o primeiro dos cinco volumes da biografia sobre o autor russo. Era uma maneira de se diferenciar de seu grande rival literário, Tolstói. Para Dostoiévski, o autor de Anna Kariênina descreveu a vida 'tranquila, estável e imutável das famílias dos grandes proprietários dos estratos superiores de Moscou'.

Algumas biografias do escritor costumam retratar a vida familiar dos Dostoiévski como infernal, principalmente por causa da figura austera do pai. Frank coloca em dúvida essa versão, que foi, de certa maneira, divulgada pelo ensaio 'Dostoiévski e o parricídio', de Sigmund Freud, um estudo clássico e muito conhecido sobre o autor de Crime e castigo. Segundo o biógrafo, o psicanalista pode ter forçado a mão ao relacionar esse clima à epilepsia, que acompanhou o autor russo desde a juventude, e aos 'supostos impulsos parricidas de Dostoiévski': 'O artigo de Freud contém algumas observações sobre a personalidade de Dostoiévski, masoquista e dominada pelo sentimento de culpa, mas o caso clínico que ele construiu numa tentativa de explicá-lo em termos psicanalíticos é pura ficção', anota Joseph Frank.

A infância do escritor não foi infernal. Segundo Frank, os pais eram extremamente dedicados aos filhos. Sua mãe, Maria Fiódorovna, foi uma mulher bastante ativa, até que começou a sentir os primeiros sintomas do que mais tarde se revelou ser tuberculose. Ela cuidava da família, apesar de contar com a ajuda de vários empregado, e também gostava de passar longas temporadas com seus oito filhos na casa de campo. Nessas ocasiões, aproveitava para administrar a propriedade, ajudava os camponeses fornecendo-lhes sementes para o plantio e tudo mais que estivesse a seu alcance. E deixava os filhos brincarem livremente. Enquanto isso, o doutor Dostoiévski, assoberbado pelo trabalho, já que também trabalhava em clínicas particulares, nem sempre conseguia acompanhar sua esposa nessas viagens, e permanecia em Moscou.

De fato, ele era um homem severo, sério, e com alguns surtos de irritação - quando, então, estourava -, mas sempre tomando cuidado para que ninguém soubesse, pois se esforçava para manter uma frágil fachada de nobre. Porém, zeloso e preocupado com o futuro de sua prole, acompanhava o estudo de todos eles e chegou a dar aulas de latim para o Mikhail e Fiódor. Os dois temiam essas aulas, pois era quando o pai se mostrava mais severo e muitas vezes se irritava com os erros dos filhos. Dizem que era um homem também muito ciumento: atingiu o máximo do ciúme quando, sem razão, começou a desconfiar que sua mulher o traía em Darovóie. Nessa época, ela estava grávidada irmã caçula do escritor, Aleksandra. Os desentendimentos aumentaram, mas os dois acabaram por se entender, depois de uma sofrida e franca troca de cartas - ambos se expressavam muito bem por escrito - qualidade que seus filhos certamente herdaram.

Diz Joseph Frank que o ganho do pai não era grande coisa, no entanto, ele mantinha certo ar de nobreza. Tinha conseguido um título nobiliárquico de funcionário, mas a vida era puxada. Moravam em um apartamento pequeno para os oito filhos, com divisões internas feitas por biombos, criando assim quartos mínimos. Várvara, a filha mais velha, por exemplo, dormia no sofá da sala, e Fiódor dormia com seu irmão, em um espaço sem nenhuma janela.

Ao chegar à adolescência, o pai decidiu que Mikhail e Fiódor iriam estudar na Academia de Engenharia Militar. Era uma maneira de lhes garantir um futuro. E os dois filhos, que sonhavam com a literatura, e principalmente nutriam a mesma paixão pelo poeta Púchkin, tiveram de se mudar para São Petersburgo. Porém, pouco antes da partida, uma dor os invadiu: Maria Fiódorovna adoeceu gravemente; estava tão fraca que nem conseguia pentear os próprios cabelos. 'Foi o período mais triste de nossa infância', anotou Andrei, um dos irmãos do escritor, em seu livro de memórias. O vínculo emocional de Fiódor com a mãe era tão forte que chegou a perder a voz quando ela morreu. O sintoma só passou quando ele chegou a São Petersburgo, no ano seguinte, em 1838.

Apenas Fiódor conseguiu entrar na Academia; Mikhail não passou nos exames e foi para outra escola. Nessa época, seu pai já não clinicava mais e passara a se dedicar às terras de Darovóie, onde as coisas não iam nada bem, com pouca colheita e, claro, pouco dinheiro. Em 1939, chegou a notícia trágica: o dr. Dostoiévski fora assassinado - fato que abalou a família. Nunca se soube ao certo se houve mesmo um crime, mas, conta Joseph Frank, a maioria dos 'camponeses do sexo masculino da aldeia foi implicada' no suposto assassinato. Há mesmo a suspeira de que ele teria morrido de apoplexia: a tensão na aldeira era grande, com muitos conflitos entre o pai do escritor, seus vizinhos e os camponeses". (DOSTOIÉVSKI, 2010, p. 377-82).


DOSTOIÉVSKI, F. Crime e castigo - Vol. I. Trad. Rosário Fusco. São Paulo, SP: Abril, 2010.

Introdução: Crime e castigo II

Os personagens


"Crime e castigo surpreende desde o início, com Raskólnikov indo até a casa de sua vítima, a velha Alióna Ivánovna, e, pelo caminho, pensando em seu projeto, premeditando tudo com cuidado para não deixar pistas. O leitor o acompanha em dois níveis: em um, pela narração em terceira pessoa, pontuando as cenas, descrevendo a cidade, as ruas, o calor asfixiante a cada passo; em outro, pelo monólogo interior do protagonista, um artifício narrativo de extrema habilidade do escritor, por meio do qual vão se revelando as ideias que conduzem Raskólnikov a seu plano de matar a velha usuária. 'Serei verdadeiramente capaz daquilo? Aquilo será mesmo uma coisa séria? Absolutamente: um simples jogo da minha imaginação, uma fantasia que me diverte...'.
Como em um romance policial, ele lança várias pistas; no entanto, não são pistas para matar uma charada simples. A grande questão é a motivação do crime, o que leva aquele jovem ex-estudante de Direito a cometer tal ato? Algumas dessas pistas surgem para envolver o leitor; há aquelas de fundo social (Dostoiévski pinta uma paisagem de total pobreza e degradação) e outras de fundo pessoal (uma carta da mãe do protagonista dizendo que sua irmã vai se casar com um advogado avarento apenas para poder ajudá-lo).

Ainda nesse acúmulo de motivos, Raskólnikov irá encontrar o bêbado Marmeládov, cuja filha se prostitui para ajudar a família, que, por causa do alcoolismo do pai, vive em um pardieiro e de forma terrível; depois, ouvirá uma conversa de bar, na qual dois homens falam da velha agiota nos piores termos, sugerindo inclusive a ideia de matá-la e roubar-lhe o dinheiro e ajudar, assim, milhares de vidas. Tudo contribui para a decisão de Raskólnikov de matar a mulher com motivos racionais e claros, para não dizer altruístas. Está aí um dos golpes narrativos do escritor: essa lógica utilitarista - que Dostoiévski costuma criticar com ênfase - como que justificaria, de forma racional, o crime que o jovem em breve cometeria - mas estava fora de seus planos matar a irmã da agiota, que também estava no apartamento e acabou assassinada com uma machadada.

No horizonte do escritor, estava a discussão sobre o niilismo que, no país, tornara-se uma corrente ideológica e de rebelião que atingira toda a juventude intelectual. Um dos personagens famosos, tratado pela literatura, foi Bazarov, de Pais e filhos, de Turguêniev. O niilismo impregnava a atmosfera cultural russa. Para esses jovens, os valores tradicionais como Deus, a verdade e o bem haviam perdido a força. Raskólnikov era um filho de sua época, carregando em si algumas 'ideias estranhas e inacabadas', como anotou o escritor, em uma carta a seu editor.

Raskólnikov é o principal personagem do romance. Dostoiévski pensou inicialmente apenas nele, para depois ir compondo um quadro bem mais complexo da sociedade russa. Em torno dele, surgem outros jovens estudantes ou funcionários, quase todos na mesma faixa etária.

O escritor criou um personagem para lá de complexo. E estabeleceu certo tipo de jogo com a emoção do leitor. Em um primeiro momento, ele focaliza o drama interno do jovem, a decisão calculada de matar a velha usuária, a febre e o delírio que lhe atingem depois de ter cometido o duplo crime (assassinar a velha e a irmã dela) - é quando o leitor, diante de Ródia totalmente enfraquecido, com atitudes ambíguas, vivendo em um quarto menos que uma cabine de trem, começa a sentir uma espécie de compaixão pelo personagem. Em um segundo momento, encontramos Raskólnikov em contraste com seu amigo Razumíkhin, ou provocando com muita astúcia o oficial Zamiótov, ou discutindo com o juiz de instrução Porfírii Petróvitch um artigo que havia escrito, tempos antes, no qual dividia a humanidade entre ordinários e extraordinários, dizendo que o último teria o direito de matar. Nesse momento, o leitor como que se afasta do personagem para perceber seu movimento complexo.

É uma estratégia narrativa que torna cada vez mais densa a história e seu personagem-tipo. É nos contrastes e situações que se percebe a intensidade desse tipo pinçado da realidade e torturado pela pena ágil e astuciosa do narrador. O artifício de Dostoiévski é tal que todos os atos, todos os eventos passam a ser filtrados pela discussão mais profunda sovre o comportamento humano, sobre a tensão entre uma moral, muitas vezes frágil e hipócrita, e a miséria econômica que cerca os personagens.

O romance apresenta pelo menos quatro núcleos de personagens que gravitam em torno de Raskólnikov: seus amigos, estudantes ou ex-estudantes, sem eira nem beira, como Razumíkhin; os investigadores, formado por Porfírii Petrovitch e o escrivão Zamiótov; familiar, com Dúnia, sua irmã, e sua mãe, além do pretendente Lújin e o ex-patrão de Dúnia, Svidrigáilov, que terá papel fundamental na parte final do romance; e o da família de Marmeládov, o bêbado, com os filhos, a esposa doente e vivendo de um passado mais nobre, e Sônia, que teve de se prostituir para sustentar a família do pai.

Sônia, que aparece com intensidade a partir da metade do romance, é uma jovem de 18 anos. 'Tinha um rosto pequenino e magro, verdadeiramente magríssimo e pálido, bem esquisito, um pouco anguloso, com um nariz e um queixo pontudos. Não se podia dizer que fosse bonita. Em compensação, seus olhos azuis eram tão límpidos e davam-lhe, inflamando-se, tal expressão de bondade e de candura, que se sentia, sem querer, atraído por ela. Outra particularidade característica de seu rosro e de toda a sua aparência: parecia muito mais nova do que realmente era, uma guria, apesar dos seus dezoito anos, e essa extrema meninice era denunciada por certos gestos, de um modo quase cômico', como a descreve o narrador pelos olhos de Raskólnikov.

Com ela, o anti-herói de Dostoiévski vive cenas inesquecíveis para o leitor, como o momento em que ele pede que ela leia um trecho do Novo Testamento - a passagem fala sobre a ressurreição de Lázaro, e o momento de alta dramaticidade da confissão do crime. Tudo encaminha para o autoconhecimento do jovem Ródia e para os motivos de seu ato. Como anota Joseph Frank, em Os anos milagrosos, comparando esses episódios com alguns solilóquios de Shakespeare, 'o verdadeiro objetivo de Raskólnikov foi unicamente testar 'se eu era um piolho como todos os outros ou um homem. [...] Se sou uma trêmula criatura ou se tenho o direito'. Com essas palavras exaltadas, finalmente o entendimento de Raskólnikov coincide com aquilo que Dostoiévski vinha comunicando há muito tempo em termos dramáticos'." (DOSTOIÉVSKI, 2010, p. 362-67).


DOSTOIÉVSKI, F. Crime e castigo - Vol. II. Trad. Rosário Fusco. São Paulo, SP: Abril, 2010.

Introdução: Crime e castigo I

A obra


 "O escritor argentino Jorge Luís Borges certa vez escreveu que havia lido o romance Crime e castigo, em 1915. 'Esse romance, cujos heróis são um assassino e uma porstituta, pareceu-me não menos terrível que a guerra que nos cercava', disse, referindo à Primeira Guerra Mundial. A impressão do escritor revela a força do romance de Dostoiévski. Ele pode dar a sensação de algo mais terrível do que uma guerra.

Dostoiévski escreveu Crime e castigo no período de sua vida em que se encontrava mais só. Havia perdido seu irmão Mikhail e sua esposa. Como se não bastasse, tinha dívidas enormes a pagar. Mas foi nessa época que escreveu seus romances centrais. Por isso, seu biógrafo, Joseph Frank, chamou os anos de sua vida que vão de 1865 a 1871 de 'Anos milagrosos' - título do quarto volume da extensa e detalhada biografia escrita por Frank. Era impressionante a capacidade de Fiódor, em meio a tais turbulências, de escrever tanto e com tanta profundidade.

Crime e castigo é um desses frutos milagrosos, uma obra-prima que marca definitivamente a literatura mundial - é impossível pensar o que seria a literatura do século XX sem esse romance e os que lhe seguiram. Muitas correntes literárias se abeberaram nesse rico mundo ficcional criado pelo escritor russo, onde os personagens, que muitas vezes podem despertar compaixão, não são os mais confiáveis. O escritor ia buscar as mazelas morais e filosóficas da alma russa para colocá-las em relevo, em primeiro plano.

Com sua capacidade redobrada para o trabalho, apesar das crises frequentes de epilepsia, ele continuou tocando a revista Época, criada por seu irmão, e que seguia com uma enormidade de dívidas. Teria sido mais fácil fechá-la, mas ele se arriscou. E, claro, perdeu muito dinheiro. Além disso, tinha o enteado Pacha para cuidar e a família de Mikhail, que, da noite para o dia, se viu privada do seu principal provedor.

Em uma viagem à Europa, depois de conseguir um adiantamento editorial por seus livros e pagar boa parte das dívidas, fez uma parada em Wiesbaden, onde acabou torrando todo o dinheiro que havia restado. Escreveu para os amigos, como o escritor Turguéniev, autor de Pais e filhos, mas o socorro financeiro não foi suficiente. Acabou fechando outro acordo editorial com um antigo desafeto, Katkóv, editor da revista Mensageiro Russo. A ele, Dostoiévski prometeu escrever uma novela sobre um ex-estudante que vive na 'mais calamitosa pobreza' e que resolve matar uma velha viúva 'que empresta dinheiro a juros'.

Em seu esboço estão as linhas gerais do que seria, depois, Crime e castigo. Seguindo a descoberta literária de Memórias do subsolo, ponto de viragem em sua obra ficcional, com narrador de traços fortemente negativos e com 'estofo de filósofo', como anotou Boris Schnaiderman, um dos maiores estudiosos da obra do escritor russo no Brasil, Dostoiévski pensava em escrever seu novo romance em primeira pessoa.

No entanto, a certa altura, resolve abandonar o que já havia escrito e dedica-se a reescrever tudo, mas em fôlego largo e em terceira pessoa, aproveitando para inserir, ao longo da narrativa, tudo o que se passava na cabeça do personagem. Também aproveita-se de outro romance que abandonara e que iria se chamar Os bêbados, no qual pretendia retratar a família dos alcoólatras, a educação dos filhos e tudo o que estivesse ao alcance desse assunto. É a triste família de Marmeládov, pai da prostituta Sônia, fundamental na trama final do escritor.

Em 1866, o romance começa a ser publicado nas páginas de Mensageiro Russo, granjeando grande sucesso e interesse do público. Não faltaram, no entanto, críticas dos que achavam tudo aquilo inverossímil.

Além do contrato com Katkóv, o escritor havia empenhado sua palavra com outro editor, aquele que o ajudara a pagar suas dívidas antes da viagem à Europa. Hesitante, aceita a sugestão de um amigo e contrata uma estenógrafa, a jovem Ana Grigórievna Snítkina. Ele, que nunca tinha trabalhado assim, acabou ditando a ela, em 26 dias, todo o romance Um jogador - que seria sua alforria da dívida com o editor." (DOSTOIÉVSKI, 2010, p. 359-62).


DOSTOIÉVSKI, F. Crime e castigo - Vol. II. Trad. Rosário Fusco. São Paulo, SP: Abril, 2010.
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