sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Crime e castigo, p. 12-24

"'É isso: tudo está ao alcance do homem e tudo lhe escapa, em virtude de sua covardia... Já virou até axioma. Coisa curiosa a observar-se: que é que os homens temem, acima de tudo? - O que for capaz de mudar-lhes os hábitos: eis o que mais apavora... Porém falo demasiado e, por isso, não faço nada. Ou, talvez, devesse dizer que não faço nada porque falo muito. Este mês, peguei a mania de monologar, escondido durante dias inteiros, no meu canto, imaginando... tolices. Por exemplo: terei mesmo necessidade de fazer este percurso? Serei, verdadeiramente, capaz daquilo? Aquilo será mesmo uma coisa séria? Absolutamente: um simples jogo da minha imaginação, uma fantasia que me diverte... Uma brincadeira. Sim, é isso mesmo: uma brincadeira.'" (DOSTOIÉVSKI, 2010, p. 12).


"'Eu sabia, resmungava na sua confusão - eu o adivinhava. Pior não podia ser. Uma coisa de nada, uma distração à toa pode estragar todo um projeto; não há dúvida, este chapéu chama a atenção... Faz-se notar, justamente, pelo ridículo... Preciso de um boné para assentar com os meus trapos, não importa o que seja, um velho gorro, mas, nunca esa coisa horrorosa. Ninguém se cobre assim, identificam-me a uma versta de distância e jamais se esquecerão disso. Sempre se volta a pensar, mais tarde, naquilo que nos chamou a atenção: e eis aí uma pista... Pois então que se trate de passar o mais desapercebido possível. Nadas, não esses nadas que interessam.' E, de si para si: 'Eles acabarão por perder-te...'." (DOSTOIÉVSKI, 2010, p. 14).


"Ocorre-nos, às vezes, encontrar pessoas, geralmente desconhecidas, que nos inspiram um interesse instantâneo, à primeira vista, antes mesmo que possamos trocar uma palavra com elas. Foi o que se deu com Raskólnikov, com relação ao sujeito que se sentava ao lado, parecendo um funcionário aposentado. Mais tarde, toda vez que recordava essa primeira impressão, atribuía-a a uma espécie de pressentimento. Não o deixava com os olhos, e o outro, por sua vez, fazia o mesmo, parecendo interessadíssimo em puxar conversa. Quanto às pessoas que se achavam na sala (o dono inclusive), considerava-as assim com um ar de desdenhosa superioridade, como seres de uma classe e de uma educação excessivamente baixas para que se dignasse dirigir-lhes a palavra." (DOSTOIÉVSKI, 2010, p. 22-3).


"- Permita-me a ousadia, cavalheiro, de dirigir-lhe a palavra para entabular uma palestra das mais permissíveis? Porque, apesar da simplicidade de seu aspecto, minha experiência adivinha que há aí um homem culto e não um freguês de tabernas. Pessoalmente, sempre respeitei o preparo unido às qualidades do coração. Aliás, sou conselheiro-titular, chamo-me Marmeládov, conselheiro-titular. Poderei inquirir-lhe se pertence à Administração?
- Não. Eu estudo - respondeu o rapaz, um pouco surpreso com essa linguagem empolada e, também, por se ter visto alvo da palavra de um estranho, assim tão diretamente, à queima-roupa. Apesar da sua nova aspiração de companhia humana, fosse qual fosse, à primeira sílaba do interlocutor sentiu a habitual e desagradabilíssima impressão de irritação e repugnância que experimentava com qualquer um que tentasse se pôr em contato com ele.
- Quer dizer que é ou foi estudante - exclamou, vivamente, o funcionário. - Foi bem o que pensei. Eis o que é a prática, meu senhor, uma longa prática. - E levou a mão à testa como que para louvar as próprias faculdades... - Estudou... Dedicou-se aos estudos... Porém, dá licença.
Levantou-se, cambaleou, pegou seu copo e veio sentar junto do rapaz. Ainda que bêbado, falava com desembaraço e vivacidade, e só de vez em quando o discurso ficava incoerente e a língua empresava. Quem o visse atacar Raskólnikov com tanta fúria diria que havia um mês não abria a boca.
- Cavalheiro - começou com certa solenidade -, pobreza não é defeito, isto é absoluta verdade. Sei, igualmente, que a embriaguez não é virtude. Mas a miséria, meu senhor, é um defeito, sim. Na pobreza, ainda poderá conservar a nobreza dos sentimentos inatos, na indigência jamais alguém poderia fazê-lo. Não é a pauladas que se enxota o indigente do convívio humano, porém a vassoura, para o humilhar mais (o que está certo) pois que só falta ultrajar-se a si próprio. Eis de onde se origina a embriaguez, cavalheiro, e saiba que minha mulher o mês passado apanhou do senhor Lebeziátnikov e, minha mulher, cavalheiro, não é a mesma coisa que eu. Entendeu?" (DOSTOIÉVSKI, 2010, p. 23-4).


DOSTOIÉVSKI, F. Crime e castigo - Vol. I. Trad. Rosário Fusco. São Paulo, SP: Abril, 2010.
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