segunda-feira, 18 de julho de 2011

A Montanha Mágica, p. 63-6

"Um grupo de pensionistas de ambos os sexos vinha se aproximando dele. Hans Castorp já os vira trilhar o caminho plano a meia altura da encosta. Agora se achavam na descida, vindo a seu encontro, a passo barulhento, numa confusão de vozes. Eram seis ou sete pessoas de diferentes idades, umas muito jovens, outras um tanto avançadas em anos. Hans Castorp contemplou-as, com a cabeça inclinada para o lado, enquanto seus pensamentos se ocupavam com Joachim. Andavam sem chapéu, tostados pelo sol. As senhoras vestiam pulôveres de cor, ao passo que os homens, na sua maioria, iam sem sobretudo e mesmo sem bengala, como quem sai sem cerimônias, com as mãos nos bolsos, para dar uma voltinha. Achavam-se na descida, que não exige grande esforço muscular, mas apenas um ligeiro refreamento, por meio das pernas fincadas no chão, para evitar o excesso de velocidade e o consequente tropeção. Assim, seu modo de andar tinha algo de alado e leve, que se comunicava às suas fisionomias e à sua atitude em geral e inspirava a quem os via o desejo de fazer parte do grupo.

E já se encontravam próximos de Hans Castorp, que se pôs a examinar-lhes os rostos. Nem todos estavam queimados pelo sol. Duas senhoras destacavam-se até pela palidez, uma magrinha como um caniço, com uma tez de marfim, e a outra, mais baixa, gorducha, com a cara salpicada de lunares. Todos o fitaram com o mesmo sorriso petulante. Uma mocinha alta, de suéter verde, com cabelos desgrenhados e uns estúpidos olhos semicerrados, passou tão perto de Hans Castorp que quase lhe roçou o braço. E ao mesmo tempo assobiava... Mas, que coisa louca! Assobiava, porém não o fazia com a boca. Nem sequer contraía os lábios; pelo contrário, mantinha-os firmemente cerrados. Havia qualquer coisa que assobiava no seu interior, enquanto ela encarava Hans Castorp, com uma mirada tola dos olhos entreabertos. Era um assobio sumamente desagradável, agudo, penetrante e todavia oco, prolongado, e que pelo fim baixava de tom, assim como fazem aqueles porquinhos de borracha que se compram nas feiras e que deixam escapar, com um som gemebundo, o ar insuflado.Tal era o ruído que partia inexplicavelmente do peito da jovem enquanto ela se afastava com o resto do grupo.

Hans Castorp quedou-se imóvel, olhando para longe. Então se virou bruscamente, percebendo que esse assobio atroz fora um trote, uma brincadeira de antemão preparada, pois viu pelos movimentos de ombros que aquela gente se ria dele. Um rapaz atarracado e beiçudo, que, para andar com as mãos nos bolsos da calça, levantava o paletó de uma forma bastante inconveniente, virou-se descaradamente para ele e riu... Nesse meio tempo, Joachim se aproximara. Passou pelo grupo, comprimentando-o na sua maneira militar, fazendo uma quase continência, e inclinando-se, de tacões unidos. Em seguida, voltou-se para o primo com um olhar interrogador.

- Que é que há com você? - perguntou.

- Ela assobiou! - respondeu Hans Castorp. - Assobiou com a barriga, ao passar junto de mim. Tenha a bondade de me explicar como isso se faz.

- Ora! - exclamou Joachim, com uma risada desdenhosa. - Não foi com a barriga. Bobagem! É a Kleefeld, Hermine Kleefeld. Assobia com o pneumotórax.
- Com quê? - gritou Hans Castorp, sumamente excitado, sem, no entanto, saber em que sentido: vacilava entre o riso e o choro quando acrescentou: - Afinal de contas, não se pode esperar que eu compreenda a gíria de vocês.

- Vamos adiante - disse Joachim. - Posso lhe explicar tudo enquanto a gente passeia. Até parece que você criou raízes. Trata-se de um negócio de cirurgia, compreende? É uma invenção que frequentemente executam aqui. O Behrens tem grande prática nisso... Quando um pulmão está muito atacado, e o outro está bom, ou pelo menos relativamente bom, dispensa-se o lado enfermo por algum tempo de qualquer atividade, a fim de poupá-lo. Quer dizer, dão um talho nesta região, no flanco, não sei precisamente onde, mas o Behrens é um mestre nessas coisas. E depois enchem a gente de gás, de nitrogênio, sabe?, e assim o pulmão carcomido é posto fora de ação. É claro que o gás introduzido no corpo não se conserva indefinidamente. Precisa ser renovado de quinze em quinze dias, mais ou menos. É a mesma coisa que reencher um balão, compreende? Ao cabo de um ano ou mais, se tudo for bem, pode o pulmão curar-se graças a esse completo descanso. Mas, nem sempre termina assim, e parece até que a intervenção é bastante arriscada. Contudo, dizem que já foram obtidos muito bons resultados com esse pneumotórax. Toda aquela turma que você acaba de encontrar o tem. Havia lá a Sra. Iltis, aquela que tem os lunares, sabe? E a Srta. Levi, uma magrinha, se você se lembra; ela ficou de cama por muitíssimo tempo. Eles formaram um grupo, pois essa coisa do pneumotórax estabelece uma relação natural entre as pessoas. Chamam-se entre si a 'Sociedade Meio-Pulmão'; são conhecidos por esse nome. Mas o orgulho da sociedade é a Hermine Kleefeld, porque sabe assobiar com o pneumotórax. É um talento especial que muito poucos têm. Como ela consegue fazê-lo, não lhe posso explicar; nem ela mesma sabe explicá-lo claramente. Depois de ter andado depressa, é capaz de assobiar interiormente, e disso se aproveita para assustar as pessoas, sobretudo os doentes recém-chegados. Acho, aliás, que com isso perde nitrogênio, pois precisa reabastecer-se de oito em oito dias.

Agora, Hans Castorp desatou a rir. No decorrer das explicações de Joachim, a sua excitação tomara decididamente o rumo da hilaridade. Enquanto prosseguia no caminho, cobrindo os olhos com a mão e inclinando-se para a frente, sentiu os ombros sacudidos por uma rápida sucessão de risinhos silenciosos.

- É uma sociedade registrada? - perguntou, numa voz embargada, que, à força de conter o riso, soava chorona e levemente queixosa. - Tem estatutos? Que pena você não ser sócio dela. Olhe, nesse caso poderiam admitir-me como sócio honorário ou como... visitante. Você deveria pedir ao Behrens que lhe ponha parte dos pulmões fora de ação. Quem sabe se você não conseguiria também assobiar, se se esforçasse um pouco? Afinal de contas, isto se aprende... Em todo caso, é a coisa mais engraçada que já vi - acrescentou, com um profundo suspiro. - Escute, não me leve a mal que eu fale desse jeito, mas eles mesmos andam tão bem-humorados, esses seus amigos pneumáticos. Quem os vê caminhando assim, alegremente... E quando se pensa que essa era a 'Sociedade Meio-Pulmão' 'Fiu-u', sibilou ela... Que pequena! Mas isso é pura traquinice. Por que estão tão alegres, pode me explicar?

Joachim esforçou-se por encontrar uma resposta. - Meu Deus - disse enfim -, eles estão tão livres... quero dizer, é gente moça, e o tempo não significa nada para eles. E quem sabe se não vão morrer! Para que então ficar com a cara triste? Às vezes me vem a idéia de que essa coisa da doença e da morte no fundo não é séria; é antes uma espécie de relaxamento. A seriedade existe somente na vida lá de baixo. Creio que você também compreenderá isso quando estiver mais tempo aqui em cima." (MANN, 1952, p. 63-6).


MANN, T. A Montanha Mágica. 1. ed. Trad. Herbert Caro. São Paulo, SP: Círculo do Livro, 1952.

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