segunda-feira, 18 de julho de 2011

A Montanha Mágica, p. 69-70

"- E você me conta essa história só agora? - disse Hans Castorp, depois de um silêncio. - Não compreendo por que deixou de fazê-lo ontem à noite... Mas, meu Deus, ela devia estar muito forte ainda para se defender desse jeito. Para isso precisa-se de muita força. Só deveriam buscar o padre quando uma pessoa estivesse muito fraca.

- Estava fraca, sim - replicou Joachim. - Ora, não me faltam histórias para contar. O difícil é fazer a primeira seleção... Bem, ela estava mesmo muito fraca. O que lhe dava tanta força era unicamente o medo. Sentia um pavor horrível, porque percebia que estava às portas da morte. Era uma mocinha, afinal, e isso justifica até certo ponto a sua conduta. Mas há também homens que se comportam assim, o que revela uma covardia imperdoável. O Behrens sabe, aliás, como lidar com esses tipos. Ele encontra o tom adequado.

- Que tom? - perguntou Hans Castorp, franzindo as sombrancelhas.

- 'Não faça tanta fita!', costuma dizer ele - respondeu Joachim. - Foi pelo menos o que disse recentemente numa ocasião dessas. Quem nos contou a história foi a enfermeira-chefe, que estava lá para segurar o agonizante.

Era um daqueles que no leito de morte ainda fazem uma cena pavorosa e absolutamente não querem morrer. Então o Behrens ralhou com ele. 'Deixe de fazer tanta fita!', disse, e o paciente logo ficou quietinho e morreu com toda a calma.
Hans Castorp deu uma palmada na coxa, e reclinando-se no encosto do banco dirigiu os olhos para o céu:

- Escute, essa é muito forte! - exclamou. - Ralhar com o doente e dizer-lhe simplesmente: 'Não faça tanta fita!' A um moribundo! É demais. Afinal de contas, um moribundo merece algum respeito. Não se pode dizer-lhe sem mais aquela... Parece-me que um moribundo é, de certo modo, sagrado.

- Não digo o contrário - concedeu Joachim. - Mas quando alguém se comporta covardemente...

- Não, senhor! - insistiu Hans Castorp, com uma violência desproporcional à oposição que se lhe fazia. - Ninguém me tirará da cabeça que um moribundo é mais nobre do que um indivíduo qualquer que passeia e ri e ganha dinheiro e enche a pança. Não é possível... - Sua voz vacilou estranhamente. - Não é possível que se trate assim... - E de súbito suas palavras se afogaram numa gargalhada que se apoderou dele e o dominou; o mesmo riso da véspera, um riso que lhe brotava das entranhas, lhe sacudia todo o corpo e não tinha fim, que lhe cerrou os olhos e extraiu lágrimas por entre as pálpebras comprimidas.

- Psiu! - fez Joachim de repente. - Cale-se! - cochichou, dando uma cotovelada no primo, que ainda se ria a bandeiras despregadas. Hans Castorp ergueu os olhos, através das lágrimas.

Vindo da esquerda, aproximava-se um forasteiro, um senhor baixinho, moreno, com bigode preto elegantemente torcido, e com calças de xadrez claro. Trocou com Joachim um 'Bom dia!' - sua saudação era nítida e sonora - e deteve-se à frente dos dois jovens, numa atitude graciosa, cruzando os pés e apoiando-se na bengala." (MANN, 1952, p. 69-70).


MANN, T. A Montanha Mágica. 1. ed. Trad. Herbert Caro. São Paulo, SP: Círculo do Livro, 1952.

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