sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Crime e castigo, p. 12-24

"'É isso: tudo está ao alcance do homem e tudo lhe escapa, em virtude de sua covardia... Já virou até axioma. Coisa curiosa a observar-se: que é que os homens temem, acima de tudo? - O que for capaz de mudar-lhes os hábitos: eis o que mais apavora... Porém falo demasiado e, por isso, não faço nada. Ou, talvez, devesse dizer que não faço nada porque falo muito. Este mês, peguei a mania de monologar, escondido durante dias inteiros, no meu canto, imaginando... tolices. Por exemplo: terei mesmo necessidade de fazer este percurso? Serei, verdadeiramente, capaz daquilo? Aquilo será mesmo uma coisa séria? Absolutamente: um simples jogo da minha imaginação, uma fantasia que me diverte... Uma brincadeira. Sim, é isso mesmo: uma brincadeira.'" (DOSTOIÉVSKI, 2010, p. 12).


"'Eu sabia, resmungava na sua confusão - eu o adivinhava. Pior não podia ser. Uma coisa de nada, uma distração à toa pode estragar todo um projeto; não há dúvida, este chapéu chama a atenção... Faz-se notar, justamente, pelo ridículo... Preciso de um boné para assentar com os meus trapos, não importa o que seja, um velho gorro, mas, nunca esa coisa horrorosa. Ninguém se cobre assim, identificam-me a uma versta de distância e jamais se esquecerão disso. Sempre se volta a pensar, mais tarde, naquilo que nos chamou a atenção: e eis aí uma pista... Pois então que se trate de passar o mais desapercebido possível. Nadas, não esses nadas que interessam.' E, de si para si: 'Eles acabarão por perder-te...'." (DOSTOIÉVSKI, 2010, p. 14).


"Ocorre-nos, às vezes, encontrar pessoas, geralmente desconhecidas, que nos inspiram um interesse instantâneo, à primeira vista, antes mesmo que possamos trocar uma palavra com elas. Foi o que se deu com Raskólnikov, com relação ao sujeito que se sentava ao lado, parecendo um funcionário aposentado. Mais tarde, toda vez que recordava essa primeira impressão, atribuía-a a uma espécie de pressentimento. Não o deixava com os olhos, e o outro, por sua vez, fazia o mesmo, parecendo interessadíssimo em puxar conversa. Quanto às pessoas que se achavam na sala (o dono inclusive), considerava-as assim com um ar de desdenhosa superioridade, como seres de uma classe e de uma educação excessivamente baixas para que se dignasse dirigir-lhes a palavra." (DOSTOIÉVSKI, 2010, p. 22-3).


"- Permita-me a ousadia, cavalheiro, de dirigir-lhe a palavra para entabular uma palestra das mais permissíveis? Porque, apesar da simplicidade de seu aspecto, minha experiência adivinha que há aí um homem culto e não um freguês de tabernas. Pessoalmente, sempre respeitei o preparo unido às qualidades do coração. Aliás, sou conselheiro-titular, chamo-me Marmeládov, conselheiro-titular. Poderei inquirir-lhe se pertence à Administração?
- Não. Eu estudo - respondeu o rapaz, um pouco surpreso com essa linguagem empolada e, também, por se ter visto alvo da palavra de um estranho, assim tão diretamente, à queima-roupa. Apesar da sua nova aspiração de companhia humana, fosse qual fosse, à primeira sílaba do interlocutor sentiu a habitual e desagradabilíssima impressão de irritação e repugnância que experimentava com qualquer um que tentasse se pôr em contato com ele.
- Quer dizer que é ou foi estudante - exclamou, vivamente, o funcionário. - Foi bem o que pensei. Eis o que é a prática, meu senhor, uma longa prática. - E levou a mão à testa como que para louvar as próprias faculdades... - Estudou... Dedicou-se aos estudos... Porém, dá licença.
Levantou-se, cambaleou, pegou seu copo e veio sentar junto do rapaz. Ainda que bêbado, falava com desembaraço e vivacidade, e só de vez em quando o discurso ficava incoerente e a língua empresava. Quem o visse atacar Raskólnikov com tanta fúria diria que havia um mês não abria a boca.
- Cavalheiro - começou com certa solenidade -, pobreza não é defeito, isto é absoluta verdade. Sei, igualmente, que a embriaguez não é virtude. Mas a miséria, meu senhor, é um defeito, sim. Na pobreza, ainda poderá conservar a nobreza dos sentimentos inatos, na indigência jamais alguém poderia fazê-lo. Não é a pauladas que se enxota o indigente do convívio humano, porém a vassoura, para o humilhar mais (o que está certo) pois que só falta ultrajar-se a si próprio. Eis de onde se origina a embriaguez, cavalheiro, e saiba que minha mulher o mês passado apanhou do senhor Lebeziátnikov e, minha mulher, cavalheiro, não é a mesma coisa que eu. Entendeu?" (DOSTOIÉVSKI, 2010, p. 23-4).


DOSTOIÉVSKI, F. Crime e castigo - Vol. I. Trad. Rosário Fusco. São Paulo, SP: Abril, 2010.

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Introdução: Crime e castigo V

Retorno do exílio


"Dostoiévski volta com uma mulher e um enteado. Na estação ferroviária, apenas um antigo amigo e seu irmão Mikhail. Ele, que tinha sido reconhecido como um novo talento, teria de recomeçar sua vida de escritor - era essa sua vocação. Trazia na bagagem um conhecimento aprofundado do homem, de suas misérias morais. Além disso, outra experiência o marcaria para sempre: começou a ter crises de epilepsia ainda no presídio. E elas o acompanharam para o resto da vida.
Nesse retorno, publicou o romance-folhetim Humilhados e ofendidos; e Recordação da casa dos mortos, que acabou por restaurar sua fama entre os literatos e leitores russos. Com seu irmão Mikhail fundou a revista O Tempo, na qual exerceria o papel de editor e colaborador, e divulgaria suas ideias, como a defesa de uma cultura russa própria, distante dos modelos prontos que chegavam da Europa. Na revista, eles também publicavam traduções, artigos e folhetins - 'Dostoiévski estava sempre procurando matérias que pudessem interessar, instruir e cativar seus assinantes regulares', conta Joseph Frank em Os efeitos da libertação, terceiro volume da biografia sobre o escritor.

A revista, porém, acabou sendo proibida por questões políticas. Mas foi nas suas páginas que ele publicou um conto da jovem Apolinária Suslova, que era 22 anos mais jovem que ele e logo se tornaria sua amante. Com ela, empreendeu uma viagem pela Europa. Ela seguiu antes para Paris, onde os dois se encontrariam. Mas Dostoiévski demorou mais do que o previsto para chegar. O fato é que parou em Wiesbaden para jogar na roleta - ele tinha tido sua primeira experiência no jogo um ano antes. A passagem é digna de nota, pois está na base de seu romance Um jogador. E essa também seria a sua segunda doença séria: o vício da jogatina.

Em 1864, Maria Dmítrievna, que já estava bastante debilitada, sendo cuidada pela família dela durante as ausências do escritor, morre, depois de uma lenta agonia. Nesse ano, outra perda terrível: seu irmão e parceiro de toda a vida, Mikhail, morre de repente. Eles tinham acabado de criar uma nova revista, Época, que substituiria O Tempo. Agora, o escritor encontrava-se, como ele mesmo disse, sozinho e 'simplesmente aterrorizado': 'Um único golpe partiu a minha vida inteira em duas. Numa metade, que eu já atravessara, estava tudo aquilo pelo que vivi, e na outra metade, ainda desconhecida, tudo era estranho e novo, e não havia um único coração que pudesse substituir aqueles dois', escreveu a um amigo.

É nessa segunda metade que surgirão aqueles que são os mais impressionantes romances da literatura mundial - Dostoiévski publicará a partir daí: Memórias do subsolo (1864), Crime e castigo (1866), Um jogador (1866), O idiota (1868), O eterno marido (1870), Os demônios (1871), O adolescente (1875) e Os irmãos Karamázov (1880), além de seu Diário de um escritor (1873-1881). Nessas obras, circula a alma de personagens atormentados, perseguidos no íntimo deles mesmos, marcados pelo niilismo, que o escritor deplorava, vivendo entre o bem e o mal e torturados por questões morais. Em resumo, o tipo que a crítica passou a chamar de 'o homem do subsolo' - esse tipo de figura humana que ele pintou com tintas ácidas e cruéis.

Nessa etapa final da vida, ele contou com o apoio de Ana Grigórievna (Snítkina) Dostoiévskaia, sua última esposa e também estenógrafa, para quem ele ditou Um jogador durante 26 dias, premido por dívidas. A ela, o autor dedicou seu genial Os irmãos Karamázov. Dostoiévski, que morreu em 28 de janeiro de 1881, respeitado e adorado pelos russos, foi um dos maiores paisagistas da alma humana. Ao comentar os manuscritos do escritor, Carpeaux conta que ele 'via primeiramente os problemas e depois as personagens'. 'No começo, ele emenda mais do que escreve, e as margens são cheias de figuras, representando catedrais, demônios, anjos, que simbolizam seus problemas. Depois, a personificação começa; o texto corre mais ligeiro, e os desenhos simbólicos se transformam em retratos imaginários; a comparação permite estabelecer as preferências do poeta, e esta comparação prova aquilo que a interpretação dos textos deixava prever: as preferências do poeta são para seus inimigos ideológicos'. Como ele ainda diz, parece que Dostoiévski criou seus 'anticristos - um Raskólnikov, um Kirillov, um Ivan Karamázov - com grande simpatia, e que estes constituem, às vezes, os intérpretes do escritor'." (DOSTOIÉVSKI, 2010, p. 385-88).


DOSTOIÉVSKI, F. Crime e castigo - Vol. I. Trad. Rosário Fusco. São Paulo, SP: Abril, 2010.

Introdução: Crime e castigo IV

Vida de escritor


 "Não foi um momento fácil para Fiódor, que tinha sido reprovado em algumas matérias na Academia e escrevera ao pai pedindo dinheiro para continuar levando a vida longe de casa. Ele se sentiu 'abatido e esmagado pela culpa', segundo Frank, quando soube da tragédia. Pelas informações que Freud havia obtido, dataria desse período a primeira crise de epilepsia de Dostoiévski; já o biógrafo lembra que não há dados que a comprovem - outros relatos sugerem que o primeiro ataque aconteceu muito tempo depois, na Sibéria.

Agora, sem a tutela do pai e com pouco dinheiro para viver, Dostoiévski aproveita para se aprofundar em sua paixão pela literatura, mergulhando na vida literária de São Petersburgo, fazendo novos amigos e escrevendo, em seu caderno, o rascunho de Gente pobre, romance de estreia do escritor, publicado em 1846. Sua vida passou a ser voltada para os textos literários. É a época em que traduz Eugénie Grandet, de Balzac, que seria publicado em russo em 1844.

O primeiro passo estava dado. Pouco depois, consegue terminar seu romance de estreia, cujos manuscritos logo chegaram às mãos do importante crítico V. G. Belínski. Ele fica surpreso com o que lê. 'Não consigo largá-lo há quase dois dias. É um romance de principiante, um novo talento', disse a um colega. Neste romance, construído de forma epistolar  e que logo passou a ser bastante comentado, Dostoiévski já revelava seu interesse pelos humilhados e ofendidos, por aquela pobre gente de São Petersburgo.

O sucesso repentino possibilitou ao jovem viver apenas da literatura. Chegou a conseguir um adiantamento de um editor. Mas, como sempre, aquilo se tornou uma cilada. Para poder se manter, viu-se obrigado a escrever folhetins para jornais e revistas, gênero literário que estavam em alta na Rússia. Mas sua carreira, e sua vida, estavam prestes a dar uma guinada radical.

Publicou seu segundo romance, O duplo, que não recebeu a mesma acolhida do primeiro. Belínski o considerou psicológico demais. O escritor afasta-se do núcleo de escritores que se formou em torno do crítico e se isola. Por essa época, conheceu um rapazola com ideias socialistas, de 26 anos. Era Mikhail Butachévitch Petrachévski. Apesar de não aderir integralmente à ideologia do amigo, ele passa a comparecer às reuniões, todas às sextas-feiras, na casa deste, onde a conversa madrugava sobre diversos assuntos, principalmente política. Dostoiévski era um crítico feroz do regime de servidão na Rússia. O círculo de Petrachévski, com suas ideias avançadas, já vinha sendo vigiado pela polícia havia muito tempo. Certa noite, pouco depois de ir se deitar, por volta das quatro da madrugada, Fiódor foi acordado pelo chefe de polícia. Ele estava sendo acusado de conspirar contra o soberano russo, Nicolau I, e instigar uma revolução de camponeses contra a escravidão.

Dostoiévski foi preso e condenado à morte. Quando já se encontrava diante do pelotão de fuzilamento, sem nenhuma alternativa, o imperador comutou a pena e condenou os revoltosos a trabalhos forçados na Sibéria, por quatro anos - essa dura experiência seria relatada no romance autobiográfico Recordações da casa dos mortos. Foram quatro anos no presídio de Omsk, onde enfrentou todo tipo de humilhação, e pôde estudar de perto a 'moralidade profundamente arraigada dos camponeses', além de se deparar com o ódio dos presos comuns aos presos intelectuais, como ele.

Em 1854, é mandado para Semipalatinsk, onde é incorporado ao Sétimo Regimento do Corpo de Exército, como soldado-raso. Lá, conheceu Maria Dmítrievna Issáiev, que era casada, mas logo ficaria viúva. Foi uma grande paixão - e os dois se casariam, em 1857. Pouco tempo depois, morre Nicolau I, sucedido no trono por seu filho Alexandre II. Estava chegando ao fim o martírio do escritor, pois em breve Alexandre, que aboliu a servidão, lhe permitiria voltar para casa, e ele poderia enfim recomeçar sua vida em São Petersburgo." (DOSTOIÉVSKI, 2010, p. 382-84).


DOSTOIÉVSKI, F. Crime e castigo - Vol. I. Trad. Rosário Fusco. São Paulo, SP: Abril, 2010.

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Introdução: Crime e castigo III

O autor


"É sempre vertiginosa a leitura dos romances de Dostoiévski. Um crítico dizia que em sua ficção havia algo tanto do romance policial como também do romance de aventura. Esse crítico, um dos mais argutos que já passou pelo Brasil, chamava-se Otto Maria Carpeaux. A definição que ele fazia para Os irmãos Karamazóv vale perfeitamente bem para este também clássico Crime e castigo: 'Se todos os romances do russo parecem romances policiais, são de um investigador das almas que nos revela, além dos crimes perpetrados, os crimes virtuais que dormem em nós outros como possibilidades. E enquanto se trata de romances de aventuras, são as aventuras espirituais, das quais a última seria a própria redenção do gênero humano'.

'Investigador das almas' e 'aventuras espirituais': duas expressões que dizem muito sobre o universo ficcional que o escritor russo criou com grande genialidade nos meados do século XIX. Poucos autores foram tão fundo nessa investigação e conseguiram retirar do poço da alma humana tantas desventuras como o fez Dostoiévski. É de se lamentar, por exemplo, o destino do protagonista de Crime e castigo, esse Raskólnikov, um pobre diabo perambulando pelas ruas decadentes de São Petersburgo, com 'o povo se comprimindo entre os andaimes, montes de cal, tijolos espalhados pelos cantos e, dominando tudo, o mau cheiro característico, tão familiar aos habitantes de São Petersburgo, que não dispõem de meio para veranear'.

Dostoiévski conhecia bem a cidade - como também a alma cindida do homem moderno. Ele tinha todas as ruas esquadrinhadas em sua mente, conhecia cada beco, cada travessa, cada ponte sobre o Nievá desde a adolescência. Depois de ter passado a infância entre Moscou e a casa da família na região rural de Darovóie, o menino - impulsionado pelo pai, o doutor Mikhail Andrévich Dostoiévski - seguiu com seu irmão mais velho, Mikhail, para São Petersburgo, onde viveria grande parte de sua vida adulta.

Fiódor Mikháilovitch Dostoiévski - Fiéda, como lhe chamavam - nasceu, em 30 de outubro de 1821, em Moscou. Seu pai era médico no Hospital Marínski para os Pobres, no subúrbio da cidade, e a família morava em um apartamento cujas janelas davam para o pátio do hospital. Conta-se que seu pai vinha de uma nobre família rural lituana; no entanto, o próprio escritor chegou a dizer que não pertencia à pequena nobreza rual, como anota o crítico Joseph Frank em As sementes da revolta, que é o primeiro dos cinco volumes da biografia sobre o autor russo. Era uma maneira de se diferenciar de seu grande rival literário, Tolstói. Para Dostoiévski, o autor de Anna Kariênina descreveu a vida 'tranquila, estável e imutável das famílias dos grandes proprietários dos estratos superiores de Moscou'.

Algumas biografias do escritor costumam retratar a vida familiar dos Dostoiévski como infernal, principalmente por causa da figura austera do pai. Frank coloca em dúvida essa versão, que foi, de certa maneira, divulgada pelo ensaio 'Dostoiévski e o parricídio', de Sigmund Freud, um estudo clássico e muito conhecido sobre o autor de Crime e castigo. Segundo o biógrafo, o psicanalista pode ter forçado a mão ao relacionar esse clima à epilepsia, que acompanhou o autor russo desde a juventude, e aos 'supostos impulsos parricidas de Dostoiévski': 'O artigo de Freud contém algumas observações sobre a personalidade de Dostoiévski, masoquista e dominada pelo sentimento de culpa, mas o caso clínico que ele construiu numa tentativa de explicá-lo em termos psicanalíticos é pura ficção', anota Joseph Frank.

A infância do escritor não foi infernal. Segundo Frank, os pais eram extremamente dedicados aos filhos. Sua mãe, Maria Fiódorovna, foi uma mulher bastante ativa, até que começou a sentir os primeiros sintomas do que mais tarde se revelou ser tuberculose. Ela cuidava da família, apesar de contar com a ajuda de vários empregado, e também gostava de passar longas temporadas com seus oito filhos na casa de campo. Nessas ocasiões, aproveitava para administrar a propriedade, ajudava os camponeses fornecendo-lhes sementes para o plantio e tudo mais que estivesse a seu alcance. E deixava os filhos brincarem livremente. Enquanto isso, o doutor Dostoiévski, assoberbado pelo trabalho, já que também trabalhava em clínicas particulares, nem sempre conseguia acompanhar sua esposa nessas viagens, e permanecia em Moscou.

De fato, ele era um homem severo, sério, e com alguns surtos de irritação - quando, então, estourava -, mas sempre tomando cuidado para que ninguém soubesse, pois se esforçava para manter uma frágil fachada de nobre. Porém, zeloso e preocupado com o futuro de sua prole, acompanhava o estudo de todos eles e chegou a dar aulas de latim para o Mikhail e Fiódor. Os dois temiam essas aulas, pois era quando o pai se mostrava mais severo e muitas vezes se irritava com os erros dos filhos. Dizem que era um homem também muito ciumento: atingiu o máximo do ciúme quando, sem razão, começou a desconfiar que sua mulher o traía em Darovóie. Nessa época, ela estava grávidada irmã caçula do escritor, Aleksandra. Os desentendimentos aumentaram, mas os dois acabaram por se entender, depois de uma sofrida e franca troca de cartas - ambos se expressavam muito bem por escrito - qualidade que seus filhos certamente herdaram.

Diz Joseph Frank que o ganho do pai não era grande coisa, no entanto, ele mantinha certo ar de nobreza. Tinha conseguido um título nobiliárquico de funcionário, mas a vida era puxada. Moravam em um apartamento pequeno para os oito filhos, com divisões internas feitas por biombos, criando assim quartos mínimos. Várvara, a filha mais velha, por exemplo, dormia no sofá da sala, e Fiódor dormia com seu irmão, em um espaço sem nenhuma janela.

Ao chegar à adolescência, o pai decidiu que Mikhail e Fiódor iriam estudar na Academia de Engenharia Militar. Era uma maneira de lhes garantir um futuro. E os dois filhos, que sonhavam com a literatura, e principalmente nutriam a mesma paixão pelo poeta Púchkin, tiveram de se mudar para São Petersburgo. Porém, pouco antes da partida, uma dor os invadiu: Maria Fiódorovna adoeceu gravemente; estava tão fraca que nem conseguia pentear os próprios cabelos. 'Foi o período mais triste de nossa infância', anotou Andrei, um dos irmãos do escritor, em seu livro de memórias. O vínculo emocional de Fiódor com a mãe era tão forte que chegou a perder a voz quando ela morreu. O sintoma só passou quando ele chegou a São Petersburgo, no ano seguinte, em 1838.

Apenas Fiódor conseguiu entrar na Academia; Mikhail não passou nos exames e foi para outra escola. Nessa época, seu pai já não clinicava mais e passara a se dedicar às terras de Darovóie, onde as coisas não iam nada bem, com pouca colheita e, claro, pouco dinheiro. Em 1939, chegou a notícia trágica: o dr. Dostoiévski fora assassinado - fato que abalou a família. Nunca se soube ao certo se houve mesmo um crime, mas, conta Joseph Frank, a maioria dos 'camponeses do sexo masculino da aldeia foi implicada' no suposto assassinato. Há mesmo a suspeira de que ele teria morrido de apoplexia: a tensão na aldeira era grande, com muitos conflitos entre o pai do escritor, seus vizinhos e os camponeses". (DOSTOIÉVSKI, 2010, p. 377-82).


DOSTOIÉVSKI, F. Crime e castigo - Vol. I. Trad. Rosário Fusco. São Paulo, SP: Abril, 2010.

Introdução: Crime e castigo II

Os personagens


"Crime e castigo surpreende desde o início, com Raskólnikov indo até a casa de sua vítima, a velha Alióna Ivánovna, e, pelo caminho, pensando em seu projeto, premeditando tudo com cuidado para não deixar pistas. O leitor o acompanha em dois níveis: em um, pela narração em terceira pessoa, pontuando as cenas, descrevendo a cidade, as ruas, o calor asfixiante a cada passo; em outro, pelo monólogo interior do protagonista, um artifício narrativo de extrema habilidade do escritor, por meio do qual vão se revelando as ideias que conduzem Raskólnikov a seu plano de matar a velha usuária. 'Serei verdadeiramente capaz daquilo? Aquilo será mesmo uma coisa séria? Absolutamente: um simples jogo da minha imaginação, uma fantasia que me diverte...'.
Como em um romance policial, ele lança várias pistas; no entanto, não são pistas para matar uma charada simples. A grande questão é a motivação do crime, o que leva aquele jovem ex-estudante de Direito a cometer tal ato? Algumas dessas pistas surgem para envolver o leitor; há aquelas de fundo social (Dostoiévski pinta uma paisagem de total pobreza e degradação) e outras de fundo pessoal (uma carta da mãe do protagonista dizendo que sua irmã vai se casar com um advogado avarento apenas para poder ajudá-lo).

Ainda nesse acúmulo de motivos, Raskólnikov irá encontrar o bêbado Marmeládov, cuja filha se prostitui para ajudar a família, que, por causa do alcoolismo do pai, vive em um pardieiro e de forma terrível; depois, ouvirá uma conversa de bar, na qual dois homens falam da velha agiota nos piores termos, sugerindo inclusive a ideia de matá-la e roubar-lhe o dinheiro e ajudar, assim, milhares de vidas. Tudo contribui para a decisão de Raskólnikov de matar a mulher com motivos racionais e claros, para não dizer altruístas. Está aí um dos golpes narrativos do escritor: essa lógica utilitarista - que Dostoiévski costuma criticar com ênfase - como que justificaria, de forma racional, o crime que o jovem em breve cometeria - mas estava fora de seus planos matar a irmã da agiota, que também estava no apartamento e acabou assassinada com uma machadada.

No horizonte do escritor, estava a discussão sobre o niilismo que, no país, tornara-se uma corrente ideológica e de rebelião que atingira toda a juventude intelectual. Um dos personagens famosos, tratado pela literatura, foi Bazarov, de Pais e filhos, de Turguêniev. O niilismo impregnava a atmosfera cultural russa. Para esses jovens, os valores tradicionais como Deus, a verdade e o bem haviam perdido a força. Raskólnikov era um filho de sua época, carregando em si algumas 'ideias estranhas e inacabadas', como anotou o escritor, em uma carta a seu editor.

Raskólnikov é o principal personagem do romance. Dostoiévski pensou inicialmente apenas nele, para depois ir compondo um quadro bem mais complexo da sociedade russa. Em torno dele, surgem outros jovens estudantes ou funcionários, quase todos na mesma faixa etária.

O escritor criou um personagem para lá de complexo. E estabeleceu certo tipo de jogo com a emoção do leitor. Em um primeiro momento, ele focaliza o drama interno do jovem, a decisão calculada de matar a velha usuária, a febre e o delírio que lhe atingem depois de ter cometido o duplo crime (assassinar a velha e a irmã dela) - é quando o leitor, diante de Ródia totalmente enfraquecido, com atitudes ambíguas, vivendo em um quarto menos que uma cabine de trem, começa a sentir uma espécie de compaixão pelo personagem. Em um segundo momento, encontramos Raskólnikov em contraste com seu amigo Razumíkhin, ou provocando com muita astúcia o oficial Zamiótov, ou discutindo com o juiz de instrução Porfírii Petróvitch um artigo que havia escrito, tempos antes, no qual dividia a humanidade entre ordinários e extraordinários, dizendo que o último teria o direito de matar. Nesse momento, o leitor como que se afasta do personagem para perceber seu movimento complexo.

É uma estratégia narrativa que torna cada vez mais densa a história e seu personagem-tipo. É nos contrastes e situações que se percebe a intensidade desse tipo pinçado da realidade e torturado pela pena ágil e astuciosa do narrador. O artifício de Dostoiévski é tal que todos os atos, todos os eventos passam a ser filtrados pela discussão mais profunda sovre o comportamento humano, sobre a tensão entre uma moral, muitas vezes frágil e hipócrita, e a miséria econômica que cerca os personagens.

O romance apresenta pelo menos quatro núcleos de personagens que gravitam em torno de Raskólnikov: seus amigos, estudantes ou ex-estudantes, sem eira nem beira, como Razumíkhin; os investigadores, formado por Porfírii Petrovitch e o escrivão Zamiótov; familiar, com Dúnia, sua irmã, e sua mãe, além do pretendente Lújin e o ex-patrão de Dúnia, Svidrigáilov, que terá papel fundamental na parte final do romance; e o da família de Marmeládov, o bêbado, com os filhos, a esposa doente e vivendo de um passado mais nobre, e Sônia, que teve de se prostituir para sustentar a família do pai.

Sônia, que aparece com intensidade a partir da metade do romance, é uma jovem de 18 anos. 'Tinha um rosto pequenino e magro, verdadeiramente magríssimo e pálido, bem esquisito, um pouco anguloso, com um nariz e um queixo pontudos. Não se podia dizer que fosse bonita. Em compensação, seus olhos azuis eram tão límpidos e davam-lhe, inflamando-se, tal expressão de bondade e de candura, que se sentia, sem querer, atraído por ela. Outra particularidade característica de seu rosro e de toda a sua aparência: parecia muito mais nova do que realmente era, uma guria, apesar dos seus dezoito anos, e essa extrema meninice era denunciada por certos gestos, de um modo quase cômico', como a descreve o narrador pelos olhos de Raskólnikov.

Com ela, o anti-herói de Dostoiévski vive cenas inesquecíveis para o leitor, como o momento em que ele pede que ela leia um trecho do Novo Testamento - a passagem fala sobre a ressurreição de Lázaro, e o momento de alta dramaticidade da confissão do crime. Tudo encaminha para o autoconhecimento do jovem Ródia e para os motivos de seu ato. Como anota Joseph Frank, em Os anos milagrosos, comparando esses episódios com alguns solilóquios de Shakespeare, 'o verdadeiro objetivo de Raskólnikov foi unicamente testar 'se eu era um piolho como todos os outros ou um homem. [...] Se sou uma trêmula criatura ou se tenho o direito'. Com essas palavras exaltadas, finalmente o entendimento de Raskólnikov coincide com aquilo que Dostoiévski vinha comunicando há muito tempo em termos dramáticos'." (DOSTOIÉVSKI, 2010, p. 362-67).


DOSTOIÉVSKI, F. Crime e castigo - Vol. II. Trad. Rosário Fusco. São Paulo, SP: Abril, 2010.

Introdução: Crime e castigo I

A obra


 "O escritor argentino Jorge Luís Borges certa vez escreveu que havia lido o romance Crime e castigo, em 1915. 'Esse romance, cujos heróis são um assassino e uma porstituta, pareceu-me não menos terrível que a guerra que nos cercava', disse, referindo à Primeira Guerra Mundial. A impressão do escritor revela a força do romance de Dostoiévski. Ele pode dar a sensação de algo mais terrível do que uma guerra.

Dostoiévski escreveu Crime e castigo no período de sua vida em que se encontrava mais só. Havia perdido seu irmão Mikhail e sua esposa. Como se não bastasse, tinha dívidas enormes a pagar. Mas foi nessa época que escreveu seus romances centrais. Por isso, seu biógrafo, Joseph Frank, chamou os anos de sua vida que vão de 1865 a 1871 de 'Anos milagrosos' - título do quarto volume da extensa e detalhada biografia escrita por Frank. Era impressionante a capacidade de Fiódor, em meio a tais turbulências, de escrever tanto e com tanta profundidade.

Crime e castigo é um desses frutos milagrosos, uma obra-prima que marca definitivamente a literatura mundial - é impossível pensar o que seria a literatura do século XX sem esse romance e os que lhe seguiram. Muitas correntes literárias se abeberaram nesse rico mundo ficcional criado pelo escritor russo, onde os personagens, que muitas vezes podem despertar compaixão, não são os mais confiáveis. O escritor ia buscar as mazelas morais e filosóficas da alma russa para colocá-las em relevo, em primeiro plano.

Com sua capacidade redobrada para o trabalho, apesar das crises frequentes de epilepsia, ele continuou tocando a revista Época, criada por seu irmão, e que seguia com uma enormidade de dívidas. Teria sido mais fácil fechá-la, mas ele se arriscou. E, claro, perdeu muito dinheiro. Além disso, tinha o enteado Pacha para cuidar e a família de Mikhail, que, da noite para o dia, se viu privada do seu principal provedor.

Em uma viagem à Europa, depois de conseguir um adiantamento editorial por seus livros e pagar boa parte das dívidas, fez uma parada em Wiesbaden, onde acabou torrando todo o dinheiro que havia restado. Escreveu para os amigos, como o escritor Turguéniev, autor de Pais e filhos, mas o socorro financeiro não foi suficiente. Acabou fechando outro acordo editorial com um antigo desafeto, Katkóv, editor da revista Mensageiro Russo. A ele, Dostoiévski prometeu escrever uma novela sobre um ex-estudante que vive na 'mais calamitosa pobreza' e que resolve matar uma velha viúva 'que empresta dinheiro a juros'.

Em seu esboço estão as linhas gerais do que seria, depois, Crime e castigo. Seguindo a descoberta literária de Memórias do subsolo, ponto de viragem em sua obra ficcional, com narrador de traços fortemente negativos e com 'estofo de filósofo', como anotou Boris Schnaiderman, um dos maiores estudiosos da obra do escritor russo no Brasil, Dostoiévski pensava em escrever seu novo romance em primeira pessoa.

No entanto, a certa altura, resolve abandonar o que já havia escrito e dedica-se a reescrever tudo, mas em fôlego largo e em terceira pessoa, aproveitando para inserir, ao longo da narrativa, tudo o que se passava na cabeça do personagem. Também aproveita-se de outro romance que abandonara e que iria se chamar Os bêbados, no qual pretendia retratar a família dos alcoólatras, a educação dos filhos e tudo o que estivesse ao alcance desse assunto. É a triste família de Marmeládov, pai da prostituta Sônia, fundamental na trama final do escritor.

Em 1866, o romance começa a ser publicado nas páginas de Mensageiro Russo, granjeando grande sucesso e interesse do público. Não faltaram, no entanto, críticas dos que achavam tudo aquilo inverossímil.

Além do contrato com Katkóv, o escritor havia empenhado sua palavra com outro editor, aquele que o ajudara a pagar suas dívidas antes da viagem à Europa. Hesitante, aceita a sugestão de um amigo e contrata uma estenógrafa, a jovem Ana Grigórievna Snítkina. Ele, que nunca tinha trabalhado assim, acabou ditando a ela, em 26 dias, todo o romance Um jogador - que seria sua alforria da dívida com o editor." (DOSTOIÉVSKI, 2010, p. 359-62).


DOSTOIÉVSKI, F. Crime e castigo - Vol. II. Trad. Rosário Fusco. São Paulo, SP: Abril, 2010.

segunda-feira, 18 de julho de 2011

A Montanha Mágica, p. 74-5

"Mas estávamos falando do senhor. Engenheiro naval! Sabe o senhor que está subindo no meu conceito? De repente se me afigura como o representante de todo um universo de trabalho e gênio prático.

- Ora, ora, Sr. Settembrini, por enquanto sou apenas um estudante e me acho bem no início.

- Pois é, e o primeiro passo custa. Como aliás é difícil todo trabalho que merece este nome, não é?

- Difícil como o diabo - disse Hans Castorp, e essas palavras lhe saíram do fundo do coração.

Rapidamente Settembrini franziu as sobrancelhas.

- O senhor invoca o próprio Diabo para confirmar isso? - perguntou. - Satã em pessoa? Sabe talvez que meu grande mestre lhe dedicou um hino?

- Como? - admirou-se Hans Castorp. - Ao Diabo?

- Em carne e osso. De vez em quando cantam esse hino na minha pátria, por ocasião de certas solenidades: O salute, o Satana, o Ribellione, o forza vindice della Ragione... Uma maravilha, esse cântico! Contudo parece-me pouco provável que o senhor tenha pensado justamente nesse Diabo, que está em ótimas relações com o trabalho. O Diabo ao qual se referiu o senhor, e que abomina o trabalho, porque tem motivos para temê-lo, deve ser aquele outro do qual dizem que com ele não se brinca...

Tudo isso causou uma impressão estranha ao bom Hans Castorp. Não compreendia o italiano, e o resto do que dizia Settembrini tampouco lhe inspirava muita confiança. Essas coisas cheiravam a sermão dominical, ainda que proferidas num tom de palestra leve e jocosa. Hans Castorp olhou o primo, que baixou os olhos e depois disse:

- O senhor toma as minhas palavras muito ao pé da letra, Sr. Settembrini. O que eu disse do Diabo era apenas uma maneira de falar e nada mais.
- Deve haver uma pessoa com espírito - disse Settembrini, mirando o ar com uma expressão melancólica. Porém, reanimando-se imediatamente, e dando à conversa um caráter jovial, gracioso e conciliador, continuou:

- Seja como for, posso deduzir, com razão, das suas palavras que o senhor escolheu uma profissão tão cansativa quanto honrosa. Meu Deus, eu sou humanista, sou um homo humanus, e nada entendo dessas coisas engenhosas, por mais sincero que seja o respeito que lhes voto. Mas imagino que a teoria da sua disciplina deve requerer um cérebro claro, penetrante; e a sua prática, um homem na genuína acepção da palavra. Não é assim?

- Exatamente, é assim mesmo. Não posso deixar de concordar com o senhor - respondeu Hans Castorp, empenhando-se, malgrado seu, em falar com alguma eloquência. - É enorme o que hoje em dia se exige de nós. Nem é bom pensar na extensão dessas exigências, pois do contrário arriscaríamos perder a coragem. Sim, senhor, não é brinquedo. E quando uma pessoa não tem uma constituição muito robusta... Olhe, eu estou aqui apenas devisita, mas também não sou dos mais resistentes. Seria mentira se dissesse que me dou perfeitamente bem com o trabalho. Pelo contrário, devo confessar que o esforço me esgota bastante. No fundo, só me sinto à vontade quando nada faço..." (MANN, 1952, p. 74-5).


MANN, T. A Montanha Mágica. 1. ed. Trad. Herbert Caro. São Paulo, SP: Círculo do Livro, 1952.

A Montanha Mágica, p. 72-3

"Hans Castorp riu-se, cheio de surpresa, e ao mesmo tempo procurou recordar quem eram Minos e Radamanto. Respondeu então:

- Desculpe, mas o senhor está enganado, Sr. Septem...

- Settembrini - corrigiu o italiano com nitidez e presteza, acrescentando uma reverência humorística.

- Sr. Settembrini, perdão! Mas, como já disse, há um equívoco da sua parte. Não estou doente. Faço apenas uma visita de algumas semanas ao meu primo Joachim e quero aproveitar esta ocasião para descansar um pouquinho...

- Vejam só! Então não é dos nossos. Goza boa saúde, está aqui apenas de passagem, como Ulisses no reino das sombras? Que audácia descer até estas profundezas, onde os mortos levam uma existência irreal, desprovida de sentido...

- Até estas profundezas, Sr. Settembrini? Não diga isso, que eu subi uns cinco mil pés para chegar aqui...

- É o que o senhor pensa. Palavra de honra, trata-se apenas de uma ilusão - disse o italiano com um gesto enérgico da mão. - Somos umas criaturas que caíram muito baixo; não é mesmo, tenente? - E com isso se voltou para Joachim, que se regozijou bastante ao ouvir o título, mas, esforçando-se por dissimular a sua satisfação, respondeu circunspectamente:

- Pode ser que a gente se tenha apatetado aqui. Mas, afinal de contas, há meios de se regenerar...

- Pois é, acho também que o senhor tem capacidade para isso; é um homem decente - disse Settembrini. - Sim, sim, sim! - acrescentou, sibilando três vezes o 's' e fazendo estalar a língua outras tantas vezes contra o céu da boca. Depois, dirigindo-se a Hans Castorp, exclamou: - Vejam só, vejam só, vejam só! - com a mesma pronúncia do 's', enquanto encarava o novato com tamanha intensidade, que seus olhos assumiam expressão fixa e cega. Por fim, reavivando o olhar, prosseguiu:

- De modo que o senhor veio voluntariamente a estas alturas, para visitar esta nossa gente decaída! Quer nos conceder por algum tempo o prazer da sua companhia... Ora, é muito gentil da sua parte. E quanto tempo tenciona ficar aqui? Sou indiscreto. Mas eu gostaria de conhecer o prazo que uma pessoa se fixa a si própria, quando se decide livremente, sem depender da vontade de Radamanto.
- Três semanas - respondeu Hans Castorp, com um orgulho um tanto fátuo, ao notar que despertava inveja.

- O Dio! Três semanas! Ouviu, tenente? Não lhe parece mesmo um tanto atrevida essa maneira de dizer: 'Vou passar aqui três semanas e depois partirei'? Fique sabendo, meu senhor, que nós aqui ignoramos uma medida de tempo que se chama semana. Para nós, a menor unidade é o mês. Fazemos as nossas contas em grande estilo, como é o privilégio das sombras. Temos ainda outros privilégios, e todos eles são desse tipo." (MANN, 1952, p. 72-3).


MANN, T. A Montanha Mágica. 1. ed. Trad. Herbert Caro. São Paulo, SP: Círculo do Livro, 1952.

A Montanha Mágica, p. 69-70

"- E você me conta essa história só agora? - disse Hans Castorp, depois de um silêncio. - Não compreendo por que deixou de fazê-lo ontem à noite... Mas, meu Deus, ela devia estar muito forte ainda para se defender desse jeito. Para isso precisa-se de muita força. Só deveriam buscar o padre quando uma pessoa estivesse muito fraca.

- Estava fraca, sim - replicou Joachim. - Ora, não me faltam histórias para contar. O difícil é fazer a primeira seleção... Bem, ela estava mesmo muito fraca. O que lhe dava tanta força era unicamente o medo. Sentia um pavor horrível, porque percebia que estava às portas da morte. Era uma mocinha, afinal, e isso justifica até certo ponto a sua conduta. Mas há também homens que se comportam assim, o que revela uma covardia imperdoável. O Behrens sabe, aliás, como lidar com esses tipos. Ele encontra o tom adequado.

- Que tom? - perguntou Hans Castorp, franzindo as sombrancelhas.

- 'Não faça tanta fita!', costuma dizer ele - respondeu Joachim. - Foi pelo menos o que disse recentemente numa ocasião dessas. Quem nos contou a história foi a enfermeira-chefe, que estava lá para segurar o agonizante.

Era um daqueles que no leito de morte ainda fazem uma cena pavorosa e absolutamente não querem morrer. Então o Behrens ralhou com ele. 'Deixe de fazer tanta fita!', disse, e o paciente logo ficou quietinho e morreu com toda a calma.
Hans Castorp deu uma palmada na coxa, e reclinando-se no encosto do banco dirigiu os olhos para o céu:

- Escute, essa é muito forte! - exclamou. - Ralhar com o doente e dizer-lhe simplesmente: 'Não faça tanta fita!' A um moribundo! É demais. Afinal de contas, um moribundo merece algum respeito. Não se pode dizer-lhe sem mais aquela... Parece-me que um moribundo é, de certo modo, sagrado.

- Não digo o contrário - concedeu Joachim. - Mas quando alguém se comporta covardemente...

- Não, senhor! - insistiu Hans Castorp, com uma violência desproporcional à oposição que se lhe fazia. - Ninguém me tirará da cabeça que um moribundo é mais nobre do que um indivíduo qualquer que passeia e ri e ganha dinheiro e enche a pança. Não é possível... - Sua voz vacilou estranhamente. - Não é possível que se trate assim... - E de súbito suas palavras se afogaram numa gargalhada que se apoderou dele e o dominou; o mesmo riso da véspera, um riso que lhe brotava das entranhas, lhe sacudia todo o corpo e não tinha fim, que lhe cerrou os olhos e extraiu lágrimas por entre as pálpebras comprimidas.

- Psiu! - fez Joachim de repente. - Cale-se! - cochichou, dando uma cotovelada no primo, que ainda se ria a bandeiras despregadas. Hans Castorp ergueu os olhos, através das lágrimas.

Vindo da esquerda, aproximava-se um forasteiro, um senhor baixinho, moreno, com bigode preto elegantemente torcido, e com calças de xadrez claro. Trocou com Joachim um 'Bom dia!' - sua saudação era nítida e sonora - e deteve-se à frente dos dois jovens, numa atitude graciosa, cruzando os pés e apoiando-se na bengala." (MANN, 1952, p. 69-70).


MANN, T. A Montanha Mágica. 1. ed. Trad. Herbert Caro. São Paulo, SP: Círculo do Livro, 1952.

A Montanha Mágica, p. 63-6

"Um grupo de pensionistas de ambos os sexos vinha se aproximando dele. Hans Castorp já os vira trilhar o caminho plano a meia altura da encosta. Agora se achavam na descida, vindo a seu encontro, a passo barulhento, numa confusão de vozes. Eram seis ou sete pessoas de diferentes idades, umas muito jovens, outras um tanto avançadas em anos. Hans Castorp contemplou-as, com a cabeça inclinada para o lado, enquanto seus pensamentos se ocupavam com Joachim. Andavam sem chapéu, tostados pelo sol. As senhoras vestiam pulôveres de cor, ao passo que os homens, na sua maioria, iam sem sobretudo e mesmo sem bengala, como quem sai sem cerimônias, com as mãos nos bolsos, para dar uma voltinha. Achavam-se na descida, que não exige grande esforço muscular, mas apenas um ligeiro refreamento, por meio das pernas fincadas no chão, para evitar o excesso de velocidade e o consequente tropeção. Assim, seu modo de andar tinha algo de alado e leve, que se comunicava às suas fisionomias e à sua atitude em geral e inspirava a quem os via o desejo de fazer parte do grupo.

E já se encontravam próximos de Hans Castorp, que se pôs a examinar-lhes os rostos. Nem todos estavam queimados pelo sol. Duas senhoras destacavam-se até pela palidez, uma magrinha como um caniço, com uma tez de marfim, e a outra, mais baixa, gorducha, com a cara salpicada de lunares. Todos o fitaram com o mesmo sorriso petulante. Uma mocinha alta, de suéter verde, com cabelos desgrenhados e uns estúpidos olhos semicerrados, passou tão perto de Hans Castorp que quase lhe roçou o braço. E ao mesmo tempo assobiava... Mas, que coisa louca! Assobiava, porém não o fazia com a boca. Nem sequer contraía os lábios; pelo contrário, mantinha-os firmemente cerrados. Havia qualquer coisa que assobiava no seu interior, enquanto ela encarava Hans Castorp, com uma mirada tola dos olhos entreabertos. Era um assobio sumamente desagradável, agudo, penetrante e todavia oco, prolongado, e que pelo fim baixava de tom, assim como fazem aqueles porquinhos de borracha que se compram nas feiras e que deixam escapar, com um som gemebundo, o ar insuflado.Tal era o ruído que partia inexplicavelmente do peito da jovem enquanto ela se afastava com o resto do grupo.

Hans Castorp quedou-se imóvel, olhando para longe. Então se virou bruscamente, percebendo que esse assobio atroz fora um trote, uma brincadeira de antemão preparada, pois viu pelos movimentos de ombros que aquela gente se ria dele. Um rapaz atarracado e beiçudo, que, para andar com as mãos nos bolsos da calça, levantava o paletó de uma forma bastante inconveniente, virou-se descaradamente para ele e riu... Nesse meio tempo, Joachim se aproximara. Passou pelo grupo, comprimentando-o na sua maneira militar, fazendo uma quase continência, e inclinando-se, de tacões unidos. Em seguida, voltou-se para o primo com um olhar interrogador.

- Que é que há com você? - perguntou.

- Ela assobiou! - respondeu Hans Castorp. - Assobiou com a barriga, ao passar junto de mim. Tenha a bondade de me explicar como isso se faz.

- Ora! - exclamou Joachim, com uma risada desdenhosa. - Não foi com a barriga. Bobagem! É a Kleefeld, Hermine Kleefeld. Assobia com o pneumotórax.
- Com quê? - gritou Hans Castorp, sumamente excitado, sem, no entanto, saber em que sentido: vacilava entre o riso e o choro quando acrescentou: - Afinal de contas, não se pode esperar que eu compreenda a gíria de vocês.

- Vamos adiante - disse Joachim. - Posso lhe explicar tudo enquanto a gente passeia. Até parece que você criou raízes. Trata-se de um negócio de cirurgia, compreende? É uma invenção que frequentemente executam aqui. O Behrens tem grande prática nisso... Quando um pulmão está muito atacado, e o outro está bom, ou pelo menos relativamente bom, dispensa-se o lado enfermo por algum tempo de qualquer atividade, a fim de poupá-lo. Quer dizer, dão um talho nesta região, no flanco, não sei precisamente onde, mas o Behrens é um mestre nessas coisas. E depois enchem a gente de gás, de nitrogênio, sabe?, e assim o pulmão carcomido é posto fora de ação. É claro que o gás introduzido no corpo não se conserva indefinidamente. Precisa ser renovado de quinze em quinze dias, mais ou menos. É a mesma coisa que reencher um balão, compreende? Ao cabo de um ano ou mais, se tudo for bem, pode o pulmão curar-se graças a esse completo descanso. Mas, nem sempre termina assim, e parece até que a intervenção é bastante arriscada. Contudo, dizem que já foram obtidos muito bons resultados com esse pneumotórax. Toda aquela turma que você acaba de encontrar o tem. Havia lá a Sra. Iltis, aquela que tem os lunares, sabe? E a Srta. Levi, uma magrinha, se você se lembra; ela ficou de cama por muitíssimo tempo. Eles formaram um grupo, pois essa coisa do pneumotórax estabelece uma relação natural entre as pessoas. Chamam-se entre si a 'Sociedade Meio-Pulmão'; são conhecidos por esse nome. Mas o orgulho da sociedade é a Hermine Kleefeld, porque sabe assobiar com o pneumotórax. É um talento especial que muito poucos têm. Como ela consegue fazê-lo, não lhe posso explicar; nem ela mesma sabe explicá-lo claramente. Depois de ter andado depressa, é capaz de assobiar interiormente, e disso se aproveita para assustar as pessoas, sobretudo os doentes recém-chegados. Acho, aliás, que com isso perde nitrogênio, pois precisa reabastecer-se de oito em oito dias.

Agora, Hans Castorp desatou a rir. No decorrer das explicações de Joachim, a sua excitação tomara decididamente o rumo da hilaridade. Enquanto prosseguia no caminho, cobrindo os olhos com a mão e inclinando-se para a frente, sentiu os ombros sacudidos por uma rápida sucessão de risinhos silenciosos.

- É uma sociedade registrada? - perguntou, numa voz embargada, que, à força de conter o riso, soava chorona e levemente queixosa. - Tem estatutos? Que pena você não ser sócio dela. Olhe, nesse caso poderiam admitir-me como sócio honorário ou como... visitante. Você deveria pedir ao Behrens que lhe ponha parte dos pulmões fora de ação. Quem sabe se você não conseguiria também assobiar, se se esforçasse um pouco? Afinal de contas, isto se aprende... Em todo caso, é a coisa mais engraçada que já vi - acrescentou, com um profundo suspiro. - Escute, não me leve a mal que eu fale desse jeito, mas eles mesmos andam tão bem-humorados, esses seus amigos pneumáticos. Quem os vê caminhando assim, alegremente... E quando se pensa que essa era a 'Sociedade Meio-Pulmão' 'Fiu-u', sibilou ela... Que pequena! Mas isso é pura traquinice. Por que estão tão alegres, pode me explicar?

Joachim esforçou-se por encontrar uma resposta. - Meu Deus - disse enfim -, eles estão tão livres... quero dizer, é gente moça, e o tempo não significa nada para eles. E quem sabe se não vão morrer! Para que então ficar com a cara triste? Às vezes me vem a idéia de que essa coisa da doença e da morte no fundo não é séria; é antes uma espécie de relaxamento. A seriedade existe somente na vida lá de baixo. Creio que você também compreenderá isso quando estiver mais tempo aqui em cima." (MANN, 1952, p. 63-6).


MANN, T. A Montanha Mágica. 1. ed. Trad. Herbert Caro. São Paulo, SP: Círculo do Livro, 1952.

quinta-feira, 7 de julho de 2011

A Montanha Mágica, p. 61-2

"- Homem muito simpático - repetiu Hans Castorp. - Tem um jeito tão desembaraçado de falar! Dá gosto ouvilo. Essa do charuto de mercúrio para designar o termômetro é mesmo muito boa. Compreendi logo... Mas agora vou acender um charuto de verdade - disse, estacando. - Já não aguento mais sem ele. Desde o meio-dia de ontem que não fumo nada que preste. Com licença! - Tirou da charuteira de couro, enfeitada com as suas iniciais em prata, um Maria Mancini, belo exemplar da camada superior da caixa, achatado em uma face, como ele gostava especialmente. Cortou a ponta com uma pequena guilhotina de corte angular que trazia na corrente do relógio. Acendeu o isqueiro, pôs fogo ao charuto bastante comprido, de ponta vertical, e tirou algumas baforadas gostosas. - Muito bem - disse então -, quanto a mim, podemos continuar o passeio. Você não fuma, claro, devido àquele excesso de entusiasmo.

- Nunca fumei - respondeu Joachim. - Para que fumaria justamente aqui?
- Não compreendo você - disse Hans Castorp. - Simplesmente não compreendo como alguém possa viver sem fumar. Priva-se, por assim dizer, do que há de melhor na vida. Em todo caso, escapa-lhe um prazer magnífico. Quando acordo pela manhã, já me alegro com a idéia de poder fumar durante o dia, e quando tomo uma refeição, já penso em fumar depois. Sim, senhor, posso dizer, com um pouco de exagero, que como apenas para ter uma oportunidade de fumar. Um dia sem tabaco seria para mim o cúmulo da insipidez, um dia totalmente vazio, sem o mínimo atrativo, e se eu qualquer dia despertasse sabendo que não poderia fumar, acho que não teria coragem nem para me levantar. Francamente ficaria na cama. Olhe, quando a gente fuma um charuto que puxa bem... claro que não deve estar furado, o que constitui um defeito muito desagradável... quero dizer, quando a gente fuma um charuto bom, sente-se garantido e nada lhe pode acontecer. É a mesma coisa que deixar-se ficar deitado numa praia; fica-se deitado, não é?, não se tem necessidade de nada, nem de trabalho nem de distrações... E fuma-se no mundo inteiro, graças a Deus! Ao que me parece, não existe nenhum lugar onde esse prazer seja desconhecido, por mais longe que nos arraste o destino. Até os exploradores das regiões polares levam fumo em abundância, para que possam aguentar os esforços das suas viagens. Isto sempre me pareceu simpático. Pode acontecer que uma pessoa ande muito mal... Suponhamos, por exemplo, que eu me encontre num estado lamentável... mas, quando tiver o meu charuto, aguentarei firme, disso tenho certeza. O charuto me faria vencer qualquer obstáculo.

- Contudo, é um sinal de fraqueza - objetou Joachim - depender do fumo a esse ponto. Behrens tem toda a razão: você é um paisano. Ele disse isso em sentido elogioso, mas você é mesmo um paisano incorrigível. Mas, afinal de contas, anda bem de saúde e pode fazer o que quiser - acrescentou, e seus olhos assumiram uma expressão cansada." (MANN, 1952, p. 61-2).


MANN, T. A Montanha Mágica. 1. ed. Trad. Herbert Caro. São Paulo, SP: Círculo do Livro, 1952.

quarta-feira, 6 de julho de 2011

A Montanha Mágica, p. 57-8

"Receara um pouco receber impressões horrorosas, mas viu-se logrado; o ambiente nessa sala parecia bastante animado. Absolutamente não despertava a idéia de um lugar de sofrimentos. Jovens de ambos os sexos, tostados pelo sol, entravam cantarolando, conversavam com as criadas e atacavam a comida com vigoroso apetite. Havia também pessoas mais idosas: casais, uma família inteira, com crianças, que falavam russo, e até uns adolescentes. As mulheres vestiam, quase todas, casaquinhos muito justos, de lã ou seda, suéteres, como os chamavam, ora brancos ora à fantasia, com golas voltadas para fora e bolsos laterais. Era bonito ver como andavam ou palestravam com as mãos enterradas nesses bolsos. Em algumas mesas, eram exibidas fotografias, sem dúvida instantâneos recentes, tirados pelos próprios pensionistas. Numa outra mesa, trocavam selos. Falavam do tempo, de como haviam dormido, e da temperatura que tinham de manhã, tirada na boca. A maioria mostrava-se alegre, provavelmente sem motivo particular, apenas por não terem preocupações imediatas e estarem reunidos num grupo numeroso. Verdade é que alguns se achavam sentados à mesa, com a cabeça apoiada nas mãos e o olhar cravado à sua frente. Mas os outros deixavam-nos cismar, e ninguém lhes prestava atenção.

De repente, Hans Castorp sobressaltou-se, irritado e como que ferido. Uma porta acabava de bater violentamente, a porta da esquerda, que dava para o vestíbulo. Escapara às mãos de alguém, ou foi mesmo fechada com estrondo. Era esse um ruído que Castorp abominava e que sempre o enfurecia. Talvez se baseasse essa animosidade na sua educação, talvez proviesse de uma idiossincrasia inata; em todo caso ele detestava as portas cerradas com estrondo e tinha vontade de esbofetear a quem cometesse esse crime na sua presença. No caso particular, tratava-se, além do mais, de uma porta envidraçada, o que, pelo tinir estridente, aumentava o choque. "Barbaridade!", disse Hans Castorp de si para si, todo revoltado, "que falta de educação!" Mas, como no mesmo instante a costureira lhe dirigisse a palavra, não teve tempo para descobrir o culpado. Contudo assomaram-lhe algumas rugas entre as sobrancelhas louras enquanto respondia à interlocutora." (MANN, 1952, p. 57-8).


MANN, T. A Montanha Mágica. 1. ed. Trad. Herbert Caro. São Paulo, SP: Círculo do Livro, 1952.

sexta-feira, 22 de abril de 2011

Pedras de Calcutá: Holocausto, p. 13-7

Holocausto


"Havia sol naquele tempo e apenas um dente doía. No começo, apenas um. Euconseguia localizar a dor e orientava três de meus dedos, indicador, médio, polegar, as extremidades unidas, até aquele ponto latejante. Eu inspirava fundo. E quando expirava, alguns raios raíam das extremidades dos dedos e atravessavam a pele dos maxilares e a carne das gengivas para ir ao encontro do ponto exato. Depois de alguns minutos eu suspirava, os músculos se soltavam, as pernas e os braços se distendiam e minha cabeça afundava na grama, o rosto voltado para o sol. Agora ficou escuro e todos os dentes doem ao mesmo tempo. Como se um enorme animal ferido passeasse, sangrando e gemendo, dentro de minha boca. Levo as duas mãos ao rosto, continuamente. Inspiro, expiro. Mas nada mais acontece.

Antes, antes ainda, foram os piolhos. Eu sentia alguns movimentos estranhos entre meus cabelos. Mas naquele tempo eram tantos pensamentos novos e incontroláveis dentro da minha cabeça que eu não sabia mais distingui-los daqueles outros movimentos, externos, escuros. Até o dia em que alguém tocou nos meus cabelos eu julguei que apenas dentro havia aquelas súbitas corridas, aquele fervilhar. Ainda havia sol, então, e se alguém puxou para fora, entre as pontas unidades de três dedos, aquela pequena coisa branca, mole, redonda, que ficou se contorcendo ao sol. Desde então, alertado, passei a separar a sua ebulição daquela outra, a de dentro. E por vezes eles desciam por meu pescoço, procurando os pêlos do peito, dos braços, do sexo. Quando não me doíam os dentes e quando havia sol, às vezes eu os comprimia devagar entre as unhas para depois jogá-los pela janela, sobre a rua, a grama. Alguns eram levados pelo vento. Os outros se reproduziam ferozmente, sem que eu nada pudesse fazer para detê-los.

Um pouco antes, não sei, ou mesmo durante ou depois, não importa - o certo é que um dia houve também as bolhas. Apareciam primeiro entre os dedos das mãos, pequenas, rosadas. Comichavam um pouco e, quando eu as apertava entre as unhas, libertavam um líquido grosso que escorria abundante entre os dedos, até pingar no chão. Daqueles vales no meio das falanges, elas escalaram os braços e atingiram o pescoço, onde se bifurcaram em dois caminhos: algumas subiram pelo rosto, outras desceram pelas pernas, alcançaram os joelhos e os pés, onde se detiveram, na impossibilidade de furar a terra. À medida que avançavam, tornavam-se maiores e comichavam ainda com mais intensidade. Minhas unhas crescidas dilaceravam a frágil pele rosada que escamava, transformando-se em feridas úmidas e lilases. A princípio o sol fazia com que secassem e cicatrizassem. Mas depois ele se foi. E agora nada mais as detém.

É preciso falar também nos outros. E na casa. Eu estava tão absorvido pelo que acontecia em meu próprio corpo que nada em volta me parecia suficientemente real. A casa, os outros. Quando percebi que elles existiam - e eram muitos, doze, treze comigo -, já meu corpo estava completamente tomado. E temi que me expulsassem. Não tínhamos luz elétrica, o sol tinha-se ido havia algum tempo, os dias eram curtos e escuros, dormíamos muito e, quando acendíamos aquelas longas velas que costumávamos roubar das igrejas, a chama não era suficiente para que pudéssemos ver uns aos outros. E também havia muito tempo não nos olhávamos nos olhos.

Somente há uma semana - como fazia muito frio e precisássemos de lenha para a lareira - fomos obrigados a queimar os móveis do andar de cima. As chamas enormes duraram algumas horas. Creio que movido pela esperança de que a luz e o calor pudessem amenizar a dor e secar as feridas, aproximei-me lentamente do fogo. Estendi as mãos e, quando olhei em volta, havia mais doze pares de mãos estendidas ao lado das minhas. Os doze pares de mãos estavam cheios de feridas úmidas e violáceas. Todos viram ao mesmo tempo, mas ninguém gritou. Eu gostaria de ter conseguido olhá-los no fundo dos olhos, de ter visto neles qualquer coisa como compaixão, paciência, tolerância, ou mesmo amizade, quem sabe amor. Não tenho certeza de ter conseguido. Na verdade não sei se não estarei cego. Há feridas em torno de meus olhos, as sombrancelhas e os cílios fervilham de piolhos. Os dentes fizeram meu rosto inchar tanto que os olhos se estreitaram e recuaram até se tornarem quase invisíveis. Suponho que os olhos de todos eles também estejam assim. Suponho também que seus pensamentos tenham sido iguais aos meus, porque quando a última madeira estalou no fogo e se consumiu aos poucos, fazendo voltar o frio e a escuridão, aproximamo-nos lentamente uns dos outros e dormimos todos assim, aconchegados, confundidos. Pela noite julguei ter escutado alguns gemidos. E fiquei pensando se era mesmo verdade que ainda sofríamos.

Na noite seguinte queimamos todos os móveis do andar de baixo. Nas noites posteriores queimamos os móveis deste único andar que resta. Como o frio não terminou, queimamos depois as paredes, as escadas, os tapetes, os objetos do banheiro, da cozinha, os quadros, as portas e as janelas. Chegou um momento em que precisamos queimar também os livros e as nossas roupas. Consegui localizar um movimento interno em mim no momento em que queimei aquela fita azul. Eu a guardava fazia muito tempo. Foi uma menina de cabelos vermelhos que a jogou para mim, um dia, no parque, como quem joga um osso a um cão faminto. A minha mão estremeceu quando a lancei ao fogo. Tive vontade de gritar e tentei segurar a mão mais próxima. Mas ela recuou como se tivesse nojo, então segurei minha própria mão e fiquei sentindo entre os dedos a umidade das feridas.

Hoje é o dia em que não temos mais nada para queimar. Havia ainda algumas cartas antigas, e são elas que estao queimando agora. Estamos olhando as chamas e pensando que cada uma pode ser a última. Há bem pouco um pensamento cruzou minha mente, talvez a mente de todos: creio que quando esta última chama apagar um de nós terá de jogar-se ao fogo. Quando pensei nisso, minha primeira reação foi o medo. Depois achei que seria bom. Os piolhos morreriam queimados, as bolhas rebentariam com o calor, o fogo cicatrizaria todas as feridas. Os dentes não doeriam mais. Não nos falaremos, não nos olharemos dentro dos olhos. Apenas um de nós treze fará o primeiro movimento, se jogará ao fogo, aquecerá os outros por alguns momentos, depois se tornará cinza, e depois mais um, e outro mais. Como um ritual. Uma ciranda, daquelas em que uma criança entra dentro dessa roda, diz um verso bem bonito, diz adeus e vai embora. Apenas já não somos crianças e desaprendemos a cantar. As cartas continuam queimando. Eu tentei pensar em Deus. Mas Deus morreu faz muito tempo. Talvez se tenha ido junto com o sol, com o calor. Pensei que talvez o sol, o calor e Deus pudessem voltar de repente, no momento exato em que a última chama se desfizer e alguém esboçar o primeiro gesto. Mas eles não voltarão. Seria bonito, e as coisas bonitas já não acontecem mais.

Apertei minhas fontes com aqueles três dedos unidos. Então tentei pensar que não estava mais aqui. E disse para mim mesmo: estive lá, faz algum tempo. Como se já tivesse passado. Mas não passou. Ainda estou aqui. Talvez daqui a pouco eu chore, ou grite, ou saia correndo no escuro. Nossos corpos estão muito próximos. Trocamos nossos piolhos, nossas bolhas. Se nos beijássemos trocaríamos também os grandes animais sangrentos das nossas bocas. Talvez eu não chore nem saia correndo. Talvez apenas afaste esses braços e pernas que enredam meus movimentos e faça o primeiro gesto em direção ao fogo. Daqui a pouco." (ABREU, 1996, p. 13-7).


ABREU, C. F. Pedras de Calcutá. 1. ed. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 1996.

Pedras de Calcutá: Mergulho I, p. 11-2

Mergulho I


"O primeiro aviso foi um barulhinho, de manhã bem cedo, quando ele se curvava para cuspir água e pasta de dentes na pia. Pensou que fosse o jato de água da torneira aberta e não ligou muito: sempre esquecia portas, janelas e torneiras abertas pelas casas e banheiros por onde andava.

Então fechou a torneira para ouvir, como todos os dias, o silêncio meio azulado das manhãs, com os periquitos cantando na varanda e os rumores diluídos dos automóveis, pouco ainda. Mas o barulhinho continuava. Fonte escorrendo: água clara de cântaros, bilhas, grutas - e ele achou bonito e lembrou (um pouco só, porque não havia tempo) remotos passeios, infâncias, encantos, namoradas.

Quando se curvou para amarrar o cordão do sapato é que percebeu que o barulhinho vinha do chão e, mais atentamente curvado, exatamente de dentro do próprio pé esquerdo. Tornou a não ligar muito; achou até bonito poder sacudir de vez em vez o pé para ouvir o barulhinho trazendo marés, memórias. Quando foi amarrar o cordão do sapato do pé direito, voltou a ouvir o mesmo barulhinho e sorriu para as obturações refletidas no espelho: dois pés, duas fontes, duas alegrias.

Ao abotoar as calças, sentiu o umbigo saltar exatamente como uma concha empurrada por uma onda mais forte e, logo após, o mesmo barulhinho, agora mais nítido, mais alto. Sentou na privada e acendeu um cigarro, pensando na feijoada do dia anterior. Antes de dar a primeira tragada, passou a mão pelo pescoço, prevenindo a áspera barba a ser feita, e o pomo-de-adão deu um salto, umbigo, concha, como se engolisse ar em seco, e não engolia nada, apenas esperava, o cigarro parado no ar.

Ergueu-se para olhar a própria cara no espelho, as calças caídas sobre os sapatos desamarrados, e abriu a boca libertando uma espécie de arroto.

Foi então que a água começou a jorrar boca afora. Primeiro em gotas, depois em fluxos mais fortes, ondas, marés, até que um quase maremoto o arrastou para fora do banheiro. Espantado, tentou segurar-se no corrimão da escada, chegou a estender os dedos, mas não havia dedos, só água se derramando degraus abaixo, atravessando o corredor, o escritório, a pequena sala de samambaias desmaiadas. Antes de atingir o patamar de entrada ele ainda pensou que seria bom, agora, não ser mais regato, nem fonte, nem lago, mas rio farto, caminhando em direção à rua, talvez ao mar.

Mas quando as ondas mais fortes rebentaram a porta de entrada para inundar o jardim, ele se contraiu, se distendeu e cessou, inteiro e vazio. Não passava de uma gota na imensa massa de água, que descia das outras casas inundando as ruas." (ABREU, 19996, p. 11-2).


ABREU, C. F. Pedras de Calcutá. 1. ed. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 1996.

Introdução: Pedras de Calcutá

O autor


"Caio Fernando Abreu nasceu em 1948 em Santiago do Boqueirão, no Rio Grande do Sul, e morreu em 1996 em Porto Alegre. Tem doze livros publicados no Brasil, entre eles Morangos mofados (1982), Onde andará Dulce Veiga? (1990), Dragões não conhecem o paraíso (1991) e Estranhos estrangeiros (1996), publicados pela Companhia das Letras. Vários de seus livros têm traduções na França, Inglaterra, Alemanha e Holanda. Em 1994 seu romance Onde andará Dulce Veiga? foi um dos seis finalistas do prêmio Laura Battaglion para o melhor romance estrangeiro na França." (ABREU, 1996).


A obra


"Em 1977, o escritor e dramaturgo gaúcho Caio Fernando Abreu, então com 28 anos, organizava sua terceira coletânea de contos, Pedras de Calcutá. O livro assinalava a conclusão de uma trajetória pessoal de independência em relação ao estado natal (Caio ampliara sua carreira jornalística para São Paulo e Rio de Janeiro), ao país (vinha de um período de três anos de auto-exílio em Londres, Estocolmo e Amsterdã), e afirmação de liberdade pessoal e não submissão ao arbítrio do regime militar. Com tudo isso, tratava-se de uma obra extremamente representativa do que se passara com muitos jovens do mundo todo.

Dividindo o volume em dois ciclos, os contos 'Mergulho I' e 'Mergulho II' assinalam os temas dominantes. De um lado, a vivência quase alucinatória da própria experiência física, objeto de narrativas atormentadas em que o corpo dos personagens suporta o drama de suas vidas. De outro, os indivíduos em busca de fatos capazes de oferecer um desfecho para situações tão insuportavelmente em suspenso que toda possibilidade de solução representa ansiedade, tensão e expectativa quase desesperadora. De cada ação se deseja extirpar uma dimensão anterior e conflituosa: da morte, a sua espera (como em 'O inimigo secreto'), da decisão, o imobilismo que a antecede ('Divagações de uma marquesa'), do amor, a hesitação ('Aconteceu na praça XV' e 'Joãozinho e Mariazinha').

Os contos resultantes exprimem o horror que pode existir entre pessoas que se descobrem perseguidas não tanto por uma ditadura, como por si mesmas. 'Pedras de Calcutá é, na sua quase totalidade, um livro de horror' - definiu Caio Fernando Abreu. 'Principalmente (mas não unicamente) da minha geração.'" (ABREU, 1996).


ABREU, C. F. Pedras de Calcutá. 1. ed. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 1996.

sexta-feira, 18 de março de 2011

Brejo das almas: O amor bate na aorta, p. 57-9

O amor bate na aorta


"Cantiga de amor sem eira
nem beira,
vira o mundo de cabeça
para baixo,
suspende a saia das mulheres,
tira os óculos dos homens,
o amor, seja como for,
é o amor.

Meu bem, não chores,
hoje tem filme de Carlito!

O amor bate na porta
o amor bate na aorta,
fui abrir e me constipei.
Cardíaco e melancólico,
o amor ronca na horta
entre pés de laranjeira
entre uvas meio verdes
e desejos já maduros.

Entre uvas meio verdes,
meu amor, não te atormentes.
Certos ácidos adoçam
a boca murcha dos velhos
e quando os dentes não mordem
e quando os braços não prendem
o amor faz uma cócega
o amor desenha uma curva
propõe uma geometria.

Amor é bicho instruído.
Olha: o amor pulou o muro
o amor subiu na árvore
em tempo de se estrepar.
Pronto, o amor se estrepou.
Daqui estou vendo o sangue
que escorre do corpo andrógino.
Essa ferida, meu bem,
às vezes não sara nunca
às vezes sara amanhã.

Daqui estou vendo o amor
irritado, desapontado,
mas também vejo outras coisas:
vejo corpos, vejo almas
vejo beijos que se beijam
ouço mãos que se conversam
e que viajam sem mapa.
Vejo muitas outras coisas
que não ouso compreender..." (ANDRADE, 2009, p. 57-9).


ANDRADE, C. D. Nova reunião: 23 livros de poesia - volume 1. 1. ed. Rio de Janeiro: BestBolso, 2009.

Brejo das almas: Um homem e seu carnaval, 56-7

Um homem e seu carnaval


"Deus me abandonou
no meio da orgia
entre uma baiana e uma egípcia.
Estou perdido.
Sem olhos, sem boca
sem dimensões.
As fitas, as cores, os barulhos
passam por mim de raspão.
Pobre poesia.

O pandeiro bate
é dentro do peito
mas ninguém percebe.
Estou lívido, gago.
Eternas namoradas
riem para mim
demonstrando os corpos,
os dentes.
Impossível perdoá-las,
sequer esquecê-las.

Deus me abandonou
no meio do rio.
Estou me afogando
peixes sulfúreos
ondas de éter

curvas curvas curvas
bandeiras de préstitos
pneus silenciosos
grandes abraços largos espaços
eternamente." (ANDRADE, p. 56-7).


ANDRADE, C. D. Nova reunião: 23 livros de poesia - volume 1. 1. ed. Rio de Janeiro: BestBolso, 2009.

Brejo das almas: Soneto da perdida esperança, p. 55

Soneto da perdida esperança


"Perdi o bonde e a esperança.
Volto pálido para casa.
A rua é inútil e nenhum auto
passaria sobre meu corpo.

Vou subir a ladeira lenta
em que os caminhos se fundem.
Todos eles conduzem ao
princípio do drama e da flora.

Não sei se estou sofrendo
ou se é alguém que se diverte
por que não? na noite escassa

com um insolúvel flautim.
Entretanto há muito tempo
nós gritamos: sim! ao eterno." (ANDRADE, 2009, p. 55).


ANDRADE, C. D. Nova reunião: 23 livros de poesia - volume 1. 1. ed. Rio de Janeiro: BestBolso, 2009.

Brejo das almas: Boca, p. 55

Boca


"Boca: nunca te beijarei.
Boca de outro, que ris de mim,
no milímetro que nos separa,
cabem todos os abismos.

Boca: se meu desejo
é impotente para fechar-te,
bem sabes disto, zombas
de minha raiva inútil.

Boca amarga pois impossível,
doce boca (não provarei),
ris sem beijo para mim,
beijas outro com seriedade." (ANDRADE, 2009, p. 55).


ANDRADE, C. D. Nova reunião: 23 livros de poesia - volume 1. 1. ed. Rio de Janeiro: BestBolso, 2009.

quinta-feira, 17 de março de 2011

Alguma poesia: Poema da purificação, p. 50

Poema da purificação


"Depois de tantos combates
o anjo bom matou o anjo mau
e jogou seu corpo no rio.

As águas ficaram tintas
de um sangue que não descorava
e os peixes todos morreram.

Mas uma luz que ninguém soube
dizer de onde tinha vindo
apareceu para clarear o mundo,
e outro anjo pensou a ferida
do anjo batalhador." (ANDRADE, 2009, p. 50).


ANDRADE, C. D. Nova reunião: 23 livros de poesia - volume 1. 1. ed. Rio de Janeiro: BestBolso, 2009.

Alguma poesia: Explicação, p. 47-8

Explicação


"Meu verso é minha consolação.
Meu verso é minha cachaça. Todo mundo tem sua cachaça.
Para beber, copo de cristal, canequinha de folha de flandres,
folha de taioba, pouco importa: tudo serve.

Para louvar a Deus como para aliviar o peito,
queixar o desprezo da morena, cantar minha vida e trabalhos
é que faço meu verso E meu verso me agrada.

Meu verso me agrada sempre...
Ele às vezes tem o ar sem-vergonha de quem vai dar uma cambalhota,
mas não é para o público, é para mim mesmo essa cambalhota.
Eu bem me entendo.
Não sou alegre. Sou até muito triste.
A culpa é da sombra das bananeiras de meu país, esta sombra mole, preguiçosa.

Há dias em que ando na rua de olhos baixos
para que ninguém desconfie, ninguém perceba
que passei a noite inteira chorando.
Estou no cinema vendo fita de Hoot Gibson,
de repente ouço a voz de uma viola...
saio desanimado.
Ah, ser filho de fazendeiro!
À beira do São Francisco, do Paraíba ou de qualquer córrego vagabundo,
é sempre a mesma sen-si-bi-li-da-de.

E a gente viajando na pátria sente saudades da pátria.
Aquela casa de nove andares comerciais
é muito interessante.
A casa colonial da fazenda também era...
No elevador penso na roça,
na roça penso no elevador.

Quem me fez assim foi minha gente e minha terra
e eu gosto bem de ter nascido com essa tara.
Para mim, de todas as burrices, a maior é suspirar pela Europa
A Europa é uma cidade muito velha onde só fazem caso de dinheiro
e tem umas atrizes de pernas adjetivas que passam a perna na gente.
O francês, o italiano, o judeu falam uma língua de farrapos.
Aqui ao menos a gente sabe que tudo é uma canalha só,
lê o seu jornal, mete a língua no governo,
queixa-se da vida (a vida está tão cara)
e no fim dá certo.

Se meu verso não deu certo, foi seu ouvido que entortou.
Eu não disse ao senhor que não sou senão poeta?" (ANDRADE, 2009, p. 47-8).


ANDRADE, C. D. Nova reunião: 23 livros de poesia - volume 1. 1. ed. Rio de Janeiro: BestBolso, 2009.

Alguma poesia: Outubro de 1930, 44-6

Outubro de 1930


"Suores misturados
no silêncio noturno.
O companheiro ronca.
O ruído igual
dos tiros e o silêncio
na sala onde os corpos
são coisas escuras.
O soldado deitado
pensando na morte.

De 5 em 5 minutos um ciclista trazia ao Estado Maior um feixe de telegramas contendo, comprimida, a trepidação dos setores. O radiotelegrafista ora triste ora alegre empunhava um papel que era a vitória ou a derrota. Nós descansávamos, jogados sobre poltronas, e abríamos para as notícias olhos que não viam, olhos que perguntavam. Às 3 da madrugada, pontualmente, recomeçava o tiroteio.

O funcionário deitado
não pensa na morte.
Pensa no amor
tornado impossível
no minuto guerreiro.
E fecha os olhos
para ver bem
o amor com sua espada
de fogo sobre a cabeça
de todos os homens,
legalistas, rebeldes.

O inimigo resistia sempre e foi preciso cortar a água do quartel. Como resistisse ainda, a água circulou de novo, desta vez azul, de metileno. A torneira aberta escorre desinfetante. O canhão fabricado em Minas - suave temperamento local - não disparou.

Olha a negra, olha a negra,
a negra fugindo
com a trouxa de roupa,
olha a bala na negra,
olha a negra no chão
e o cadáver com os seios enormes, expostos, inúteis.

O general, com seus bigodes tumultuosos, era o mais doce dos seres, e destilava uma ternura vaporosa em seu costume de usar culotte sem perneiras. A um canto do salão atulhado de mapas e em que telefones esticados retiniam trazendo fatos, levando ordens, eu fazia, exercício fácil, a caricatura do seu imenso nariz. Que todos acharam ótima e reprovaram com indignação cívica.

A esta hora no Recife,
em Guaxupé, Turvo, Jaguara,
Itararé,
Baixo Guandu,
Igarapava,
Chiador,
homens estão se matando
com as necessárias cautelas.
Pelo Brasil inteiro há tiros, granadas,
literatura explosiva de boletins,
mulheres carinhosas cosendo fardas
com bolsos onde estudantes guardarão retratos
das respectivas, longínquas namoradas,
homens preparando discursos,
outros, solertes, captando rádios,
minando pontes,
outros (são governadores) dando o fora,
pedidos de comissionamento
por atos de bravura,
ordens do dia,
'o inimigo (?) retirou-se em fuga precipitada,
deixando abundante material bélico,
cinco mortos e vinte feridos...'
Um novo, claro Brasil
surge, indeciso, da pólvora.
Meu Deus, tomai conta de nós.

Deus vela o sono dos brasileiros.
Anjos alvíssimos espreitam
a hora de apagar a luz de teu quarto
para abrirem sobre ti as asas
que afugentam os maus espíritos
e purificam os sonhos.
Deus vela o sono e o sonho dos brasileiros.
Mas eles acordam e brigam de novo." (ANDRADE, 2009, p. 44-6).


ANDRADE, C. D. Nova reunião: 23 livros de poesia - volume 1. 1. ed. Rio de Janeiro: BestBolso, 2009.

Alguma poesia: Epigrama para Emílio Moura, p. 41

Epigrama para Emílio Moura


"Tristeza de ver a tarde cair
como cai uma folha.
(No Brasil não há outono
mas as folhas caem.)

Tristeza de comprar um beijo
Como quem compra jornal.
Os que amam sem amor
não terão o reino dos céus.

Tristeza de guardar um segredo
que todos sabem
e não contar a ninguém
(que esta vida não presta)." (ANDRADE, 2009, p. 41).


ANDRADE, C. D. Nova reunião: 23 livros de poesia - volume 1. 1. ed. Rio de Janeiro: BestBolso, 2009.

Alguma poesia: Balada do amor através das idades, p. 38-9

Balada do amor através das idades


"Eu te gosto, você me gosta
desde tempos imemoriais.
Eu era grego, você troiana,
troiana mas não Helena.
Saí do cavalo de pau
para matar seu irmão.
Matei, brigamos, morremos.

Virei soldado romano,
perseguidor de cristãos.
Na porta da catacumba
encontrei-te novamente.
Mas quando vi você nua
caída na areia do circo
e o leão que vinha vindo,
dei um pulo desesperado
e o leão comeu nós dois.

Depois fui pirata mouro,
flagelo da Tripolitânia.
Toquei fogo na fragata
onde você se escondia
da fúria do meu bergantim.
Mas quando ia te pegar
e te fazer minha escrava,
você fez o sinal da cruz
e rasgou o peito a punhal...
Me suicidei também.

Depois (tempos mais amenos)
fui cortesão de Versailles,
espirituoso e devasso.
Você cismou de ser freira...
Pulei muro de convento
mas complicações políticas
nos levaram à guilhotina.

Hoje sou moço moderno,
remo, pulo, danço, boxo,
tenho dinheiro no banco.
Você é uma loura notável,
boxa, dança, pula, rema.
Seu pai é que não faz gosto.
Mas depois de mil peripécias,
Eu, herói da Paramount,
te abraço, beijo e casamos." (ANDRADE, 2009, p. 38-9).


ANDRADE, C. D. Nova reunião: 23 livros de poesia - volume 1. 1. ed. Rio de Janeiro: BestBolso, 2009.

Alguma poesia: Anedota búlgara, p. 36

Anedota búlgara


"Era uma vez um czar naturalista
que caçava homens.
Quando lhe disseram que também se caçam borboletas e andorinhas,
ficou muito espantado
e achou uma barbaridade." (ANDRADE, 2009, p. 36).


ANDRADE, C. D. Nova reunião: 23 livros de poesia - volume 1. 1. ed. Rio de Janeiro: BestBolso, 2009.

Alguma poesia: O sobrevivente, p. 35

O sobrevivente

A Cyro dos Anjos


"Impossível compor um poema a essa altura da evolução da humanidade.
Impossível escrever um poema - uma linha que seja - de verdadeira poesia.
O último trovador morreu em 1914.
Tinha um nome de que ninguém se lembra mais.
Há maquinas terrivelmente complicadas para as necessidades mais simples.
Se quer fumar um charuto aperte um botão.
Paletós abotoam-se por eletricidade.
Amor se faz pelo sem-fio.
Não precisa estômago para digestão.
Um sábio declarou a O Jornal que ainda
falta muito para atingirmos um nível
razoável de cultura. Mas até lá, felizmente,
estarei morto.
Os homens não melhoraram
e matam-se como percevejos.
Os percevejos heroicos renascem.
Inabitável, o mundo é cada vez mais habitado.
E se os olhos reaprendessem a chorar seria um segundo dilúvio.
(Desconfio que escrevi um poema.)" (ANDRADE, 2009, p. 35)


ANDRADE, C. D. Nova reunião: 23 livros de poesia - volume 1. 1. ed. Rio de Janeiro: BestBolso, 2009.

Alguma poesia: Papai Noel às avessas, p. 32-3

Papai Noel às avessas

A Afonso Arinos (sobrinho)


"Papai Noel entrou pela porta dos fundos
(no Brasil as chaminés não são praticáveis),
entrou cauteloso que nem marido depois da farra.
Tateando na escuridão torceu o comutador
e a eletricidade bateu nas coisas resignadas,
coisas que continuavam coisas no mistério do Natal.
Papai Noel explorou a cozinha com olhos espertos,
achou um queijo e comeu.

Depois tirou do bolso um cigarro que não quis acender.
Teve medo talvez de pegar fogo nas barbas postiças
(no Brasil os Papais-Noéis são todos de cara raspada)
e avançou pelo corredor branco de luar.
Aquele quarto é o das crianças.
Papai entrou compenetrado.

Os meninos dormiam sonhando outros natais muito mais lindos
mas os sapatos deles estavam cheinhos de brinquedos
soldados mulheres elefantes navios
e um presidente de república de celuloide.

Papai Noel agachou-se e recolheu aquilo tudo
no interminável lenço vermelho da alcobaça.
Fez a trouxa e deu o nó, mas apertou tanto
que lá dentro mulheres elefantes soldados presidente brigavam por causa do aperto.

Os pequenos continuavam dormindo.
Longe um galo comunicou o nascimento de Cristo.
Papai Noel voltou de manso para a cozinha,
apagou a luz, saiu pela porta dos fundos.

Na horta, o luar de Natal abençoava os legumes." (ANDRADE, 2009, p. 32-3).


ANDRADE, C. D. Nova reunião: 23 livros de poesia - volume 1. 1. ed. Rio de Janeiro: BestBolso, 2009.

Alguma poesia: Fuga, p. 31-2

Fuga


"As atitudes inefáveis,
os inexprimíveis delíquios,
êxtases, espasmos, beatitudes
não são possíveis no Brasil.

O poeta vai enchendo a mala,
põe camisas, punhos, loções,
um exemplar da Imitação
e parte para outros rumos.

A vaia amarela dos papagaios
rompe o silêncio da despedida.
- Se eu tivesse cinco mil pernas
(diz ele) fugia com todas elas.

Povo feio, moreno, bruto,
não respeita meu fraque preto.
Na Europa reina a geometria
e todo mundo anda - como eu - de luto.

Estou de luto por Anatole
France, o de Thaïs, joia soberba.
Não há cocaína, não há morfina
igual a essa divina
papa-fina.

Vou perder-me nas mil orgias
do pensamento greco-latino.
Museus! estátuas! catedrais!
O Brasil só tem canibais.

Dito isso fechou-se em copas.
Joga-lhe um mico uma banana,
por um tico não vai ao fundo.

Enquanto os bárbaros sem barbas
sob o Cruzeiro do Sul
se entregam perdidamente
sem anatólios nem capitólios
aos deboches americanos." (ANDRADE, 2009, p. 31-2).


ANDRADE, C. D. Nova reunião: 23 livros de poesia - volume 1. 1. ed. Rio de Janeiro: BestBolso, 2009.

Alguma poesia: Poesia, p. 28

Poesia


"Gastei uma hora pensando um verso
que a pena não quer escrever.
No entanto ele está cá dentro
inquieto, vivo.
Ele está cá dentro
e não quer sair.
Mas a poesia deste momento
inunda minha vida inteira." (ANDRADE, 2009, p. 28).


ANDRADE, C. D. Nova reunião: 23 livros de poesia - volume 1. 1. ed. Rio de Janeiro: BestBolso, 2009.

Alguma poesia: Nota social, p. 26-7

Nota social


"O poeta chega na estação.
O poeta desembarca.
O poeta toma um auto.
O poeta vai para o hotel.
E enquanto ele faz isso
como qualquer homem da terra,
uma ovação o persegue
feito vaia.
Bandeirolas
abrem alas.
Bandas de música. Foguetes.
Discursos. Povo de chapéu de palha.
Máquinas fotográficas assestadas.
Automóveis imóveis.
Bravos...
O poeta está melancólico.

Numa árvore do passeio público
(melhoramento da atual administração)
árvore gorda, prisioneira
de anúncios coloridos,
árvore banal, árvore que ninguém vê
canta uma cigarra.
Canta uma cigarra que ninguém ouve
um hino que ninguém aplaude.
Canta, no sol danado.

O poeta entra no elevador
o poeta sobe
o poeta fecha-se no quarto.

O poeta está melancólico." (ANDRADE, 2009, p. 26-7).


ANDRADE, C. D. Nova reunião: 23 livros de poesia - volume 1. 1. ed. Rio de Janeiro: BestBolso, 2009.

Alguma poesia: Poema do jornal, p. 25-6

Poema do jornal


"O fato ainda não acabou de acontecer
e já a mão nervosa do repórter
o transforma em notícia.
O marido está matando a mulher.
A mulher ensanguentada grita.
Ladrões arrombam o cofre.
A polícia dissolve o meeting.
A pena escreve.

Vem da sala de linotipos a doce música mecânica." (ANDRADE, 2009, p. 25-6).


ANDRADE, C. D. Nova reunião: 23 livros de poesia - volume 1. 1. ed. Rio de Janeiro: BestBolso, 2009.
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