quinta-feira, 17 de março de 2011

Alguma poesia: Papai Noel às avessas, p. 32-3

Papai Noel às avessas

A Afonso Arinos (sobrinho)


"Papai Noel entrou pela porta dos fundos
(no Brasil as chaminés não são praticáveis),
entrou cauteloso que nem marido depois da farra.
Tateando na escuridão torceu o comutador
e a eletricidade bateu nas coisas resignadas,
coisas que continuavam coisas no mistério do Natal.
Papai Noel explorou a cozinha com olhos espertos,
achou um queijo e comeu.

Depois tirou do bolso um cigarro que não quis acender.
Teve medo talvez de pegar fogo nas barbas postiças
(no Brasil os Papais-Noéis são todos de cara raspada)
e avançou pelo corredor branco de luar.
Aquele quarto é o das crianças.
Papai entrou compenetrado.

Os meninos dormiam sonhando outros natais muito mais lindos
mas os sapatos deles estavam cheinhos de brinquedos
soldados mulheres elefantes navios
e um presidente de república de celuloide.

Papai Noel agachou-se e recolheu aquilo tudo
no interminável lenço vermelho da alcobaça.
Fez a trouxa e deu o nó, mas apertou tanto
que lá dentro mulheres elefantes soldados presidente brigavam por causa do aperto.

Os pequenos continuavam dormindo.
Longe um galo comunicou o nascimento de Cristo.
Papai Noel voltou de manso para a cozinha,
apagou a luz, saiu pela porta dos fundos.

Na horta, o luar de Natal abençoava os legumes." (ANDRADE, 2009, p. 32-3).


ANDRADE, C. D. Nova reunião: 23 livros de poesia - volume 1. 1. ed. Rio de Janeiro: BestBolso, 2009.

Nenhum comentário:

Creative Commons License
Esta obra está licenciada sob uma Licença Creative Commons.