quinta-feira, 3 de março de 2011

Introdução: O Lobo da Estepe I

"Escrito em 1927, O Lobo da Estepe já desafiou, incólume, o gosto e as tendências de várias gerações, e agora adentra o terceiro milênio na certeza de que continuará a despertar a atenção de novos e mais céticos leitores. Porque este é um livro que não se lê inocuamente, por mera distração ou para se estar em dia com os sucessos do momento. É um livro que mexe, que altera, que subverte a estrutura psíquica do leitor e se coloca além do tempo e de suas influências por se ter transformado num clássico. Por isso, mesmo aqueles que já o leram em outras fases de sua vida encontram na releitura uma nova satisfação, descobrem nas sutilezas de sua trama, na profundidade de suas cogitações, no intrincado de sua simbologia, outras revelações que a experiência ou a apuração da sensibilidade literária lhes fará reconhecer.

É curioso notar que Hesse apresenta no livro três versões de seu personagem: a primeira, um suposto prefácio do editor, que na figura do sobrinho da senhoria do Lobo da Estepe relata o breve conhecimento que teve do hóspede. É a narrativa típica de um burguês que vê com estranheza a proximidade de um indivíduo singular, de hábitos conflitantes com os seus, os quais julga os únicos apropriados ao ser humano. A segunda é a narrativa do próprio personagem, Harry Haller, cujo nome alternativo já é uma insinuação de ser ele o alter ego do escritor. Na verdade, grandes partes da narrativa, em especial a evocação da juventude de Haller, são de cunho autobiográfico. Ademais, a propensão de Harry para viver em ambientes burgueses, embora abomine e vergaste a burguesia, torna seu perfil bastante próximo da idealização que dele faz o sobrinho da locadora. E a terceira, atribuída ao desconhecido autor do panfleto Tratado do Lobo da Estepe, que o personagem recebe de um propagandista ambulante, é vazada numa linguagem próxima do jargão psicanalítico e contém o estudo do comportamento de um "lobo da estepe", que é o retrato em corpo e alma inteiros dele mesmo.

Esse sistema tríplice de exposição vai se repetir nos outros personagens - Hermínia, Maria e Pablo -, que são desdobramentos da personalidade de Harry. A primeira, de forma insistente, afirma ser "o espelho de Harry", e o modo quase magisterial com que se expressa convém muito mais à formação cultural deste do que a uma garota de programa, que é a atividade dela. Hermínia chega mesmo, em determinado ponto da narrativa, a verbalizar a teoria de Ludwig Klages de que o corpo e a alma eram unos a princípio, até serem separados pelo intelecto, que se indentifica com a serpente paradisíaca, portanto, com o demônio, o que constitui uma das teses preferidas do Lobo. Se Hermínia é o componente feminino de Haller a partir do próprio nome (Hermann-Hermínia), Maria por sua vez é apenas o corpo que se entrega, a parte "disponível" de Hermínia, pois esta se recusa a unir-se com Haller e deseja ser "morta" por ele. Já Pablo é sua versão masculina, aquele que gostaria de ser, e por isso suas referências guardam necessariamente um caráter homossexual, masturbatório, ou seja, o ser copulando consigo mesmo. Todos esses personagens vão se encontrar no Teatro Mágico, uma espécie de eufemismo para o uso de drogas.

Tudo isso poderia levar o leitor a ver no livro uma dessas narrativas simbólicas, que necessitam de decodificação psicanalítica para seu melhor entendimento. Mas na verdade não chega a ser bem ou só isso. O cerne do livro é sem dúvida o conflito entre os impulsos naturais do ser e as contenções espirituais de sua contraparte. Mas, com pouco, o autor reconhece que a dualidade homem-lobo é por demais simplificadora, que dentro de cada ser há centenas, milhares de outros seres, enfim, que a personalidade humana está sujeita a uma infinidade de atitudes, que encerra toda espécie de labirintos.

A partir desse núcleo, pode-se dizer que o livro é um breviário de reeducação moral, de desmantelamento de um vida voltada para o ascetismo e sujeita a todo tipo de contenções, uma indução a que o personagem realize os impulsos que nele permaneciam sufocados. Quem conhece a juventude devota de Hesse - destinado por seus pais missionários à carreira eclesiástica; sua passagem por muitos seminários, donde foge finalmente para tentar vida autônoma na Suíça, como aprendiz de relojoeiro e caixeiro de livraria - percebe logo que o escritor fez da necessidade de "libertar" outros seres retraídos, semelhantes a ele, uma bandeira, um programa de vida literária, mediante a apresentação de paralelos que são capazes de reconciliar as partes antagônicas da personalidade. Não se esqueça de que Hesse, por essa época, tinha uma esposa em crise psiquiátrica e ele próprio se consultava em Luzerna com o Dr. J. Lange, discípulo de Jung.

A esse propósito, é admirável aquele momento do Teatro Mágico em que Haller (e conseqüentemente Hesse) recorda sua timidez diante da primeira namorada, a quem não ousa dizer as palavras que lhe teriam aberto as portas da plenitude. A possibilidade de revisão do passado, de passar a vida a limpo, que lhe oferece o Teatro Mágico, encerra a lição de que é preciso vencer as inibições mediante a coragem de agir. Hesse pratica aí uma espécie de surrealismo avant la lettre fazendo a existência prevalecer à essência, como na famosa proposição de Sartre. No fim, percebe-se que o Lobo da Estepe, sem abrir mão de seu refinamento, de seu elitismo, de sua sublimação musical, quer e pode igualmente participar do mundo dos comuns e nele reconhecer alegrias que outrora lhe pareciam vedadas ou indignas. O Lobo da Estepe é, pois, um Bildungsroman goethiano em sentido contrário, onde se cruzam temas de Hoffmann, Nietzsche, Freud e Dostoiévski." (HESSE, 2009, p. 5-8).


HESSE, H. O Lobo da Estepe. 1. ed. Trad. Ivo Barroso. Rio de Janeiro: BestBolso, 2009.

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