quinta-feira, 3 de março de 2011

Introdução: O Lobo da Estepe II

"O livro tem sua parte, por assim dizer, politicamente correta: o personagem é antibelicista (de maneira quase agressiva), ecológico (a ponto de querer arrancar os edifícios para dar lugar a antigos parques e jardins); condena a sociedade capitalista (que gostaria de ver afogada para sempre). Mas tem também suas derrapadas e incongruências: a maneira como descreve Pablo, embora cheia de insinuações, tem algo de racista quando fala em seus "olhos de mestiço" (Kreolenaugen em alemão); a insistência na divisão elitista da sociedade entre homens "diferentes" (intelectualmente bem-dotados) e homens comuns (a massa ignara). Mas é incontestavelmente válida sua condenação da guerra e sua análise do nacional-socialismo que então tomava corpo na Alemanha. Outras das cenas singulares que ocorrem no Teatro Mágico (cujo sucedâneo hoje seriam os jogos virtuais) é, sem dúvida, a "caçada automobilística" em que Haller e seu ex-colega de escola Gustav se postam no belvedere de uma estrada para disparar contra todos os carros que aparecem. Gustav expõe sua teoria de que a guerra serve para equilibrar a proliferação humana e diz que tanto faz abater os carros que venham numa ou noutra direção, querendo Hesse com isso talvez significar que a guerra é uma insanidade sob qualquer ponto de vista. Ao mesmo tempo, Haller, veemente condenador da ação guerreira sob todas as suas formas, experimenta um estranho prazer em destroçar os veículos que surgem. Hesse terá provavelmente pretendido demonstrar com essa espécie de parábola que mesmo os seres ditos racionais podem se entregar à carnificina dependendo das circunstâncias em que se encontrem. Quando surge um transeunte que nada tem a ver com a existência ou a destruição dos carros, Haller pergunta a Gustav: "Você gostaria de atirar contra aquele homem e lhe fazer um buraco na nuca? Por Deus que eu não conseguiria." Ao que o amigo retruca: "Isso é porque não te ordenaram", podendo isso significar que até mesmo os bem-pensantes são capazes de violência e terror quando açulados por um Führer.

É claro que um livro como este tenha levantado protestos tanto da direita quanto da esquerda. O próprio Hesse, quando de sua publicação, reclamava que "a burguesia rejeitava o livro por ser impiedoso e desordenado, e os socialistas porque o achavam irremediavelmente individualista (ou seja, demasiadamente 'burguês', segundo eles)". Embora o livro seja tudo isso ao mesmo tempo, ele se coloca num lugar à parte graças a luminosidade de seu estilo, ao poderoso arsenal léxico de suas construções elaboradas, e mesmo à sua poesia, que, longe de nos darem a sensação de artificialismo, nos transmitem uma emoção de coisa vívida e vivida, de pulsação, de energia, de clarividência. Além disso, nunca se poderá esquecer que ele representou extraordinário avanço sobre a linguagem da época, com sua temática ousada, onde há referências explícitas ao uso de drogas e a comportamentos eróticos e homossexuais pouco freqüentes nas obras sérias de então.

Por este e outros motivos foi que, ao ser atribuído a Hesse o Prêmio Nobel de Literatura de 1946, Anders Österling, secretário da Academia desde 1941, entusiasmado defensor dessa candidatura proposta por Thomas Mann, teve de recuar de seu propósito de condecorar "obras cujo estilo arpesentasse audácias inovadoras" para atribuí-lo unicamente à poesia de Hesse, em que o melódico se funde numa vaga espiritualidade simbolista. Österling, que escrevera um vigoroso prefácio para a edição sueca de O Lobo da Estepe em 1932, só conseguira convencer seus pares a conceder a láurea a Hermann Hesse calando sobre os extraordinários impactos demolidores do escritor. Diante desses equívocos, o próprio Hesse achou conveniente escrever um posfácio ao livro, em que ressalta que "a história do Lobo da Estepe é, sem dúvida alguma, de sofrimentos e necessidades, mas mesmo assim não é um livro de um homem em desespero, mas o de um homem que crê. Embora trate de enfermidade e crise, não conduz à destruição e à morte, mas, ao contrário, à redenção"." (HESSE, 2009, p. 8-10).


HESSE, H. O Lobo da Estepe. 1. ed. Trad. Ivo Barroso. Rio de Janeiro: BestBolso, 2009.

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