quinta-feira, 17 de março de 2011

Alguma poesia: Fuga, p. 31-2

Fuga


"As atitudes inefáveis,
os inexprimíveis delíquios,
êxtases, espasmos, beatitudes
não são possíveis no Brasil.

O poeta vai enchendo a mala,
põe camisas, punhos, loções,
um exemplar da Imitação
e parte para outros rumos.

A vaia amarela dos papagaios
rompe o silêncio da despedida.
- Se eu tivesse cinco mil pernas
(diz ele) fugia com todas elas.

Povo feio, moreno, bruto,
não respeita meu fraque preto.
Na Europa reina a geometria
e todo mundo anda - como eu - de luto.

Estou de luto por Anatole
France, o de Thaïs, joia soberba.
Não há cocaína, não há morfina
igual a essa divina
papa-fina.

Vou perder-me nas mil orgias
do pensamento greco-latino.
Museus! estátuas! catedrais!
O Brasil só tem canibais.

Dito isso fechou-se em copas.
Joga-lhe um mico uma banana,
por um tico não vai ao fundo.

Enquanto os bárbaros sem barbas
sob o Cruzeiro do Sul
se entregam perdidamente
sem anatólios nem capitólios
aos deboches americanos." (ANDRADE, 2009, p. 31-2).


ANDRADE, C. D. Nova reunião: 23 livros de poesia - volume 1. 1. ed. Rio de Janeiro: BestBolso, 2009.

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