sexta-feira, 11 de março de 2011

Introdução: Nova Reunião - Carlos Drummond de Andrade III

Posfácio à edição de bolso

DRUMMOND, POETA DE MUITAS FACES


"Em 1942, a Editora José Olympio reuniu em um volume, chamado Poesias, os títulos até então publicados pelo poeta Carlos Drummond de Andrade: Alguma poesia, Brejo das almas e Sentimento do mundo, aos quais se juntava o inédito José, com o poema homônimo que se tornaria um dos mais conhecidos do autor. À época, tinha Drummond 40 anos de idade, e fazia apenas 12 que lançara o primeiro livro. Já demonstrava, porém, saber que não só comporia versos, mas criaria uma obra, cumpriria uma carreira no cenário da nossa literatura. Havia, pois, que dar ao que escrevesse a feição de um corpus poético, à medida que outros trabalhos se unissem ao conjunto. Assim, vieram depois Poesia até agora, em 1948 (com o acréscimo de Novos poemas); Fazendeiro do ar e Poesia até agora, em 1954 (com mais Claro enigma e Fazendeiro do ar); e Poemas, em 1959, cuja novidade é A vida passada a limpo.

Foi em 1964 o lançamento, pela Editora Nova Aguilar, da Obra completa de Carlos Drummond de Andrade, 'organizada com a sua colaboração', como se lê na 'Nota Editorial'. Reeditada em 1967, a partir da terceira edição (1973), 'reorganizada pelo autor', passa a chamar-se Poesia completa e prosa, com uma seleção das crônicas anteriormente publicadas. A sexta edição, já intitulada Poesia e prosa, foi a última organizada por Drummond, em 1982, quando completou 80 anos de vida.

Em 1969, sai pela José Olympio a Reunião: 10 livros de poesia, com uma longa e substanciosa 'Introdução' em que Antônio Houaiss comenta aspectos de Alguma poesia, Brejo das almas, Sentimento do mundo, José, A rosa do povo, Novos poemas, Claro enigma, Fazendeiro do ar, A vida passada a limpo e Lição de coisas. A 11ª edição (1983) denomina-se Nova reunião: 19 livros de poesia, em dois volumes: no primeiro, os originalmente coligidos, a que se acresceram A falta que ama e As impurezas do branco; no segundo, A paixão medida, Boitempo I, Boitempo II (Menino antigo), Boitempo III (Esquecer para lembrar), Viola de bolso (seleção), (seleção) e Versiprosa e Discurso de primavera e algumas sombras (seleção).

Agora, as Edições BestBolso lançam, em três volumes, a Nova reunião: 23 livros de poesia, com seleções de mais quatro títulos - Corpo, Amar se aprende amando, O amor natural e Farewell - que se somam aos anteriormente publicados. Um índice de livros e poemas, ao final de cada volume, e a seção Drummond vida e obra atualizada orientam a leitura desta antologia de bolso, para que se conheçam, mais e melhor, a vida e a poesia de Carlos Drummond de Andrade, nome que daria grandeza a qualquer literatura.

Falecido em 1987, aos 85 anos de idade, o autor de Claro enigma deixou uma obra que se impõe pela riqueza humana e pelo mérito literário. Obra que, rematada há 22 anos - a par de alguns poucos livros póstumos, como O amor natural (1992) e Farewell (1996) -, permite-nos, hoje, considerá-la na plenitude em que se consumou, como fazer humano e como criação artística. Já na primeira estrofe do primeiro poema do primeiro livro Drummond dizia a que viera, não como senhor das musas ou peregrino dos astros, mas como um brasileiro comum, destinado a sofrer e a errar:


Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos!, ser gauche na vida.


Quinze anos mais tarde, em 'Procura da poesia', é outra a atitude do poeta:


Não faça ersos sobre acontecimentos.
(...)
As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam.
(...)
Nem me reveles teus sentimentos,
que se prevalecem do equívoco e tentam a longa viagem.
O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.


Contradição? Que seja, pois coerência ideológica pode ser matéria da política, da arte, não. Em 1984, na excelente entrevista que me concedeu, afirmava Drummond:


Eu acho que a função do poeta é produzir emoção, é derpertar no próximo um sentimento de beleza, de alegria, de tristeza - mas sobretudo um sentimento de comunhão com a vida (...) Então eu acho que o poeta cumprirá melhor sua missão se fizer versos e esses versos forem bons. Se os seus temas coincidirem com os problemas do mundo de hoje, tanto melhor; mas se ele contar apenas a sua dor de cotovelo, a sua emoção particular, ainda assim estará fazendo um bem à humanidade.


Assim, a dizer de si próprio ou a refletir sobre a condição humana, o poeta compôs uma obra em que se destacam 'certas características, preocupações e tendências que a condicionam ou definem, em conjunto', como escreveu na 'Informação' para a sua Antologia poética, lançada em 1962 pela Editora do Autor. E apresenta, como 'pontos de partida ou matéria de poesia', o indivíduo, a terra natal, a família, os amigos, o choque social, o conhecimento amoroso, a própria poesia, exercícios lúdicos e 'uma visão, ou tentativa de, da existência'.

Natural que essa poesia, abrangente e vigorosa, alcance de maneira tão profunda a sensibilidade dos leitores. Homens e mulheres, jovens e adultos que a leem no original em português e em traduções para mais de dez línguas: alemão, búlgaro, chinês, dinamarquês, espanhol, francês, holandês, inglês, italiano, norueguês, sueco, tcheco e até latim. Com tamanha força, a poética drummondiana vai além da literatura para renascer em outras artes: o poema 'A mesa' inspirou à artista plástica Yara Tupinambá, em 1992, um conjunto de óleos sobre tela; em 2002, o Grupo de Dança 1° Ato, de Belo Horizonte, coreografou a obra de Drummond no espetáculo 'Sem lugar'; Paulo Diniz musicou e gravou, em 1974, o poema 'José'; em 1985, foi a vez de Sérgio Ricardo, com 'Estória de João-Joana', apresentada como um 'cordel musical'; no disco E agora José? - Remix (2002), o músico Billy Forghieri faz Drummond 'cantar' seu famoso poema à maneira do rap, com um surpreendente toque de provocação e de modernidade...

No cinema, destacam-se os filmes O padre e a moça (1985), de Joaquim Pedro de Andrade, quase homônimo do poema ('O padre, a moça') em que se inspira; O vestido (2004), de Paulo Thiago, que conta a história evocada por Drummond em 'Caso do vestido'; e O amor natural (1996), documentário da diretora Heddy Honigmann para a televisão holandesa. Com os versos eróticos de Drummond em punho, a diretora anda por ruas e praias do Rio de Janeiro, a pedir que mulheres e homens maduros escolham uma página para ler. A proposta é gravar a reação desses senhores e senhoras respeitáveis ante poemas como 'A bunda, que engraçada' e 'O chão é cama'. O filme vale pela espontaneidade dos participantes e pela riqueza humana dos testemunhos.

Quanto à bibliografia sobre a obra poética de Carlos Drummond de Andrade, são muitos os livros, dissertações de mestrado, teses de doutorado, estudos acadêmicos e artigos de jornal, que se devem a críticos com a importância de Otto Maria Carpeaux, Antônio Houaiss, Affonso Romano de Sant'Anna, Hélcio Martins, Emanuel de Moraes, Luiz Costa Lima, Gilberto Mendonça Teles, Vagner Camilo, John Gledson, Joaquim-Francisco Coelho, José Guilherme Merquior, Linhares Filho, Carlos Augusto Viana, Domingo Gonzalez Cruz e Eduardo Dall'Alba, entre tantos outros. Junte-se, a esses nomes, o poeta e ensaísta argentino Manuel Graña Etcheverry, autor de La poética de Carlos Drummond de Andrade, pesquisa ainda inédita, em que cataloga 38 mil versos da lírica drummondiana e os submete à matemática aplicada à literatura, como fez Pierre Guiraud com a obra de baudelaire. Segundo o autor, na poesia de Drummond 86,3% dos versos são brancos, e 13,7%, rimados; contam-se 408 menções explícitas à poesia e a termos afins; acham-se 432 neologismos e leem-se 845 nomes próprios, que o pesquisador ordena por sexo e profissão.

Conclui-se, pois, que Carlos Drummond de Andrade não precisou de academias nem da glória do Nobel para que o reconheçamos, hoje, como um patrimônio da literatura brasileira. É o sentimento que nos dá esta Nova reunião drummondiana, convite irrecusável para a leitura (ou releitura) de 23 livros do homem que, com apenas duas mãos e o sentimento do mundo, soube transformar o tempo e a vida na mais pura e luminosa poesia." (ANDRADE, 2009, p. 411-4).


Edmílson Caminha
jornalista e escritor
Brasília, agosto de 2009


ANDRADE, C. D. Nova reunião: 23 livros de poesia - volume 1. 1. ed. Rio de Janeiro: BestBolso, 2009.

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