quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Introdução: Crime e castigo I

A obra


 "O escritor argentino Jorge Luís Borges certa vez escreveu que havia lido o romance Crime e castigo, em 1915. 'Esse romance, cujos heróis são um assassino e uma porstituta, pareceu-me não menos terrível que a guerra que nos cercava', disse, referindo à Primeira Guerra Mundial. A impressão do escritor revela a força do romance de Dostoiévski. Ele pode dar a sensação de algo mais terrível do que uma guerra.

Dostoiévski escreveu Crime e castigo no período de sua vida em que se encontrava mais só. Havia perdido seu irmão Mikhail e sua esposa. Como se não bastasse, tinha dívidas enormes a pagar. Mas foi nessa época que escreveu seus romances centrais. Por isso, seu biógrafo, Joseph Frank, chamou os anos de sua vida que vão de 1865 a 1871 de 'Anos milagrosos' - título do quarto volume da extensa e detalhada biografia escrita por Frank. Era impressionante a capacidade de Fiódor, em meio a tais turbulências, de escrever tanto e com tanta profundidade.

Crime e castigo é um desses frutos milagrosos, uma obra-prima que marca definitivamente a literatura mundial - é impossível pensar o que seria a literatura do século XX sem esse romance e os que lhe seguiram. Muitas correntes literárias se abeberaram nesse rico mundo ficcional criado pelo escritor russo, onde os personagens, que muitas vezes podem despertar compaixão, não são os mais confiáveis. O escritor ia buscar as mazelas morais e filosóficas da alma russa para colocá-las em relevo, em primeiro plano.

Com sua capacidade redobrada para o trabalho, apesar das crises frequentes de epilepsia, ele continuou tocando a revista Época, criada por seu irmão, e que seguia com uma enormidade de dívidas. Teria sido mais fácil fechá-la, mas ele se arriscou. E, claro, perdeu muito dinheiro. Além disso, tinha o enteado Pacha para cuidar e a família de Mikhail, que, da noite para o dia, se viu privada do seu principal provedor.

Em uma viagem à Europa, depois de conseguir um adiantamento editorial por seus livros e pagar boa parte das dívidas, fez uma parada em Wiesbaden, onde acabou torrando todo o dinheiro que havia restado. Escreveu para os amigos, como o escritor Turguéniev, autor de Pais e filhos, mas o socorro financeiro não foi suficiente. Acabou fechando outro acordo editorial com um antigo desafeto, Katkóv, editor da revista Mensageiro Russo. A ele, Dostoiévski prometeu escrever uma novela sobre um ex-estudante que vive na 'mais calamitosa pobreza' e que resolve matar uma velha viúva 'que empresta dinheiro a juros'.

Em seu esboço estão as linhas gerais do que seria, depois, Crime e castigo. Seguindo a descoberta literária de Memórias do subsolo, ponto de viragem em sua obra ficcional, com narrador de traços fortemente negativos e com 'estofo de filósofo', como anotou Boris Schnaiderman, um dos maiores estudiosos da obra do escritor russo no Brasil, Dostoiévski pensava em escrever seu novo romance em primeira pessoa.

No entanto, a certa altura, resolve abandonar o que já havia escrito e dedica-se a reescrever tudo, mas em fôlego largo e em terceira pessoa, aproveitando para inserir, ao longo da narrativa, tudo o que se passava na cabeça do personagem. Também aproveita-se de outro romance que abandonara e que iria se chamar Os bêbados, no qual pretendia retratar a família dos alcoólatras, a educação dos filhos e tudo o que estivesse ao alcance desse assunto. É a triste família de Marmeládov, pai da prostituta Sônia, fundamental na trama final do escritor.

Em 1866, o romance começa a ser publicado nas páginas de Mensageiro Russo, granjeando grande sucesso e interesse do público. Não faltaram, no entanto, críticas dos que achavam tudo aquilo inverossímil.

Além do contrato com Katkóv, o escritor havia empenhado sua palavra com outro editor, aquele que o ajudara a pagar suas dívidas antes da viagem à Europa. Hesitante, aceita a sugestão de um amigo e contrata uma estenógrafa, a jovem Ana Grigórievna Snítkina. Ele, que nunca tinha trabalhado assim, acabou ditando a ela, em 26 dias, todo o romance Um jogador - que seria sua alforria da dívida com o editor." (DOSTOIÉVSKI, 2010, p. 359-62).


DOSTOIÉVSKI, F. Crime e castigo - Vol. II. Trad. Rosário Fusco. São Paulo, SP: Abril, 2010.

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