quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Introdução: Crime e castigo II

Os personagens


"Crime e castigo surpreende desde o início, com Raskólnikov indo até a casa de sua vítima, a velha Alióna Ivánovna, e, pelo caminho, pensando em seu projeto, premeditando tudo com cuidado para não deixar pistas. O leitor o acompanha em dois níveis: em um, pela narração em terceira pessoa, pontuando as cenas, descrevendo a cidade, as ruas, o calor asfixiante a cada passo; em outro, pelo monólogo interior do protagonista, um artifício narrativo de extrema habilidade do escritor, por meio do qual vão se revelando as ideias que conduzem Raskólnikov a seu plano de matar a velha usuária. 'Serei verdadeiramente capaz daquilo? Aquilo será mesmo uma coisa séria? Absolutamente: um simples jogo da minha imaginação, uma fantasia que me diverte...'.
Como em um romance policial, ele lança várias pistas; no entanto, não são pistas para matar uma charada simples. A grande questão é a motivação do crime, o que leva aquele jovem ex-estudante de Direito a cometer tal ato? Algumas dessas pistas surgem para envolver o leitor; há aquelas de fundo social (Dostoiévski pinta uma paisagem de total pobreza e degradação) e outras de fundo pessoal (uma carta da mãe do protagonista dizendo que sua irmã vai se casar com um advogado avarento apenas para poder ajudá-lo).

Ainda nesse acúmulo de motivos, Raskólnikov irá encontrar o bêbado Marmeládov, cuja filha se prostitui para ajudar a família, que, por causa do alcoolismo do pai, vive em um pardieiro e de forma terrível; depois, ouvirá uma conversa de bar, na qual dois homens falam da velha agiota nos piores termos, sugerindo inclusive a ideia de matá-la e roubar-lhe o dinheiro e ajudar, assim, milhares de vidas. Tudo contribui para a decisão de Raskólnikov de matar a mulher com motivos racionais e claros, para não dizer altruístas. Está aí um dos golpes narrativos do escritor: essa lógica utilitarista - que Dostoiévski costuma criticar com ênfase - como que justificaria, de forma racional, o crime que o jovem em breve cometeria - mas estava fora de seus planos matar a irmã da agiota, que também estava no apartamento e acabou assassinada com uma machadada.

No horizonte do escritor, estava a discussão sobre o niilismo que, no país, tornara-se uma corrente ideológica e de rebelião que atingira toda a juventude intelectual. Um dos personagens famosos, tratado pela literatura, foi Bazarov, de Pais e filhos, de Turguêniev. O niilismo impregnava a atmosfera cultural russa. Para esses jovens, os valores tradicionais como Deus, a verdade e o bem haviam perdido a força. Raskólnikov era um filho de sua época, carregando em si algumas 'ideias estranhas e inacabadas', como anotou o escritor, em uma carta a seu editor.

Raskólnikov é o principal personagem do romance. Dostoiévski pensou inicialmente apenas nele, para depois ir compondo um quadro bem mais complexo da sociedade russa. Em torno dele, surgem outros jovens estudantes ou funcionários, quase todos na mesma faixa etária.

O escritor criou um personagem para lá de complexo. E estabeleceu certo tipo de jogo com a emoção do leitor. Em um primeiro momento, ele focaliza o drama interno do jovem, a decisão calculada de matar a velha usuária, a febre e o delírio que lhe atingem depois de ter cometido o duplo crime (assassinar a velha e a irmã dela) - é quando o leitor, diante de Ródia totalmente enfraquecido, com atitudes ambíguas, vivendo em um quarto menos que uma cabine de trem, começa a sentir uma espécie de compaixão pelo personagem. Em um segundo momento, encontramos Raskólnikov em contraste com seu amigo Razumíkhin, ou provocando com muita astúcia o oficial Zamiótov, ou discutindo com o juiz de instrução Porfírii Petróvitch um artigo que havia escrito, tempos antes, no qual dividia a humanidade entre ordinários e extraordinários, dizendo que o último teria o direito de matar. Nesse momento, o leitor como que se afasta do personagem para perceber seu movimento complexo.

É uma estratégia narrativa que torna cada vez mais densa a história e seu personagem-tipo. É nos contrastes e situações que se percebe a intensidade desse tipo pinçado da realidade e torturado pela pena ágil e astuciosa do narrador. O artifício de Dostoiévski é tal que todos os atos, todos os eventos passam a ser filtrados pela discussão mais profunda sovre o comportamento humano, sobre a tensão entre uma moral, muitas vezes frágil e hipócrita, e a miséria econômica que cerca os personagens.

O romance apresenta pelo menos quatro núcleos de personagens que gravitam em torno de Raskólnikov: seus amigos, estudantes ou ex-estudantes, sem eira nem beira, como Razumíkhin; os investigadores, formado por Porfírii Petrovitch e o escrivão Zamiótov; familiar, com Dúnia, sua irmã, e sua mãe, além do pretendente Lújin e o ex-patrão de Dúnia, Svidrigáilov, que terá papel fundamental na parte final do romance; e o da família de Marmeládov, o bêbado, com os filhos, a esposa doente e vivendo de um passado mais nobre, e Sônia, que teve de se prostituir para sustentar a família do pai.

Sônia, que aparece com intensidade a partir da metade do romance, é uma jovem de 18 anos. 'Tinha um rosto pequenino e magro, verdadeiramente magríssimo e pálido, bem esquisito, um pouco anguloso, com um nariz e um queixo pontudos. Não se podia dizer que fosse bonita. Em compensação, seus olhos azuis eram tão límpidos e davam-lhe, inflamando-se, tal expressão de bondade e de candura, que se sentia, sem querer, atraído por ela. Outra particularidade característica de seu rosro e de toda a sua aparência: parecia muito mais nova do que realmente era, uma guria, apesar dos seus dezoito anos, e essa extrema meninice era denunciada por certos gestos, de um modo quase cômico', como a descreve o narrador pelos olhos de Raskólnikov.

Com ela, o anti-herói de Dostoiévski vive cenas inesquecíveis para o leitor, como o momento em que ele pede que ela leia um trecho do Novo Testamento - a passagem fala sobre a ressurreição de Lázaro, e o momento de alta dramaticidade da confissão do crime. Tudo encaminha para o autoconhecimento do jovem Ródia e para os motivos de seu ato. Como anota Joseph Frank, em Os anos milagrosos, comparando esses episódios com alguns solilóquios de Shakespeare, 'o verdadeiro objetivo de Raskólnikov foi unicamente testar 'se eu era um piolho como todos os outros ou um homem. [...] Se sou uma trêmula criatura ou se tenho o direito'. Com essas palavras exaltadas, finalmente o entendimento de Raskólnikov coincide com aquilo que Dostoiévski vinha comunicando há muito tempo em termos dramáticos'." (DOSTOIÉVSKI, 2010, p. 362-67).


DOSTOIÉVSKI, F. Crime e castigo - Vol. II. Trad. Rosário Fusco. São Paulo, SP: Abril, 2010.

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