sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Introdução: Crime e castigo V

Retorno do exílio


"Dostoiévski volta com uma mulher e um enteado. Na estação ferroviária, apenas um antigo amigo e seu irmão Mikhail. Ele, que tinha sido reconhecido como um novo talento, teria de recomeçar sua vida de escritor - era essa sua vocação. Trazia na bagagem um conhecimento aprofundado do homem, de suas misérias morais. Além disso, outra experiência o marcaria para sempre: começou a ter crises de epilepsia ainda no presídio. E elas o acompanharam para o resto da vida.
Nesse retorno, publicou o romance-folhetim Humilhados e ofendidos; e Recordação da casa dos mortos, que acabou por restaurar sua fama entre os literatos e leitores russos. Com seu irmão Mikhail fundou a revista O Tempo, na qual exerceria o papel de editor e colaborador, e divulgaria suas ideias, como a defesa de uma cultura russa própria, distante dos modelos prontos que chegavam da Europa. Na revista, eles também publicavam traduções, artigos e folhetins - 'Dostoiévski estava sempre procurando matérias que pudessem interessar, instruir e cativar seus assinantes regulares', conta Joseph Frank em Os efeitos da libertação, terceiro volume da biografia sobre o escritor.

A revista, porém, acabou sendo proibida por questões políticas. Mas foi nas suas páginas que ele publicou um conto da jovem Apolinária Suslova, que era 22 anos mais jovem que ele e logo se tornaria sua amante. Com ela, empreendeu uma viagem pela Europa. Ela seguiu antes para Paris, onde os dois se encontrariam. Mas Dostoiévski demorou mais do que o previsto para chegar. O fato é que parou em Wiesbaden para jogar na roleta - ele tinha tido sua primeira experiência no jogo um ano antes. A passagem é digna de nota, pois está na base de seu romance Um jogador. E essa também seria a sua segunda doença séria: o vício da jogatina.

Em 1864, Maria Dmítrievna, que já estava bastante debilitada, sendo cuidada pela família dela durante as ausências do escritor, morre, depois de uma lenta agonia. Nesse ano, outra perda terrível: seu irmão e parceiro de toda a vida, Mikhail, morre de repente. Eles tinham acabado de criar uma nova revista, Época, que substituiria O Tempo. Agora, o escritor encontrava-se, como ele mesmo disse, sozinho e 'simplesmente aterrorizado': 'Um único golpe partiu a minha vida inteira em duas. Numa metade, que eu já atravessara, estava tudo aquilo pelo que vivi, e na outra metade, ainda desconhecida, tudo era estranho e novo, e não havia um único coração que pudesse substituir aqueles dois', escreveu a um amigo.

É nessa segunda metade que surgirão aqueles que são os mais impressionantes romances da literatura mundial - Dostoiévski publicará a partir daí: Memórias do subsolo (1864), Crime e castigo (1866), Um jogador (1866), O idiota (1868), O eterno marido (1870), Os demônios (1871), O adolescente (1875) e Os irmãos Karamázov (1880), além de seu Diário de um escritor (1873-1881). Nessas obras, circula a alma de personagens atormentados, perseguidos no íntimo deles mesmos, marcados pelo niilismo, que o escritor deplorava, vivendo entre o bem e o mal e torturados por questões morais. Em resumo, o tipo que a crítica passou a chamar de 'o homem do subsolo' - esse tipo de figura humana que ele pintou com tintas ácidas e cruéis.

Nessa etapa final da vida, ele contou com o apoio de Ana Grigórievna (Snítkina) Dostoiévskaia, sua última esposa e também estenógrafa, para quem ele ditou Um jogador durante 26 dias, premido por dívidas. A ela, o autor dedicou seu genial Os irmãos Karamázov. Dostoiévski, que morreu em 28 de janeiro de 1881, respeitado e adorado pelos russos, foi um dos maiores paisagistas da alma humana. Ao comentar os manuscritos do escritor, Carpeaux conta que ele 'via primeiramente os problemas e depois as personagens'. 'No começo, ele emenda mais do que escreve, e as margens são cheias de figuras, representando catedrais, demônios, anjos, que simbolizam seus problemas. Depois, a personificação começa; o texto corre mais ligeiro, e os desenhos simbólicos se transformam em retratos imaginários; a comparação permite estabelecer as preferências do poeta, e esta comparação prova aquilo que a interpretação dos textos deixava prever: as preferências do poeta são para seus inimigos ideológicos'. Como ele ainda diz, parece que Dostoiévski criou seus 'anticristos - um Raskólnikov, um Kirillov, um Ivan Karamázov - com grande simpatia, e que estes constituem, às vezes, os intérpretes do escritor'." (DOSTOIÉVSKI, 2010, p. 385-88).


DOSTOIÉVSKI, F. Crime e castigo - Vol. I. Trad. Rosário Fusco. São Paulo, SP: Abril, 2010.

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