quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Introdução: Crime e castigo III

O autor


"É sempre vertiginosa a leitura dos romances de Dostoiévski. Um crítico dizia que em sua ficção havia algo tanto do romance policial como também do romance de aventura. Esse crítico, um dos mais argutos que já passou pelo Brasil, chamava-se Otto Maria Carpeaux. A definição que ele fazia para Os irmãos Karamazóv vale perfeitamente bem para este também clássico Crime e castigo: 'Se todos os romances do russo parecem romances policiais, são de um investigador das almas que nos revela, além dos crimes perpetrados, os crimes virtuais que dormem em nós outros como possibilidades. E enquanto se trata de romances de aventuras, são as aventuras espirituais, das quais a última seria a própria redenção do gênero humano'.

'Investigador das almas' e 'aventuras espirituais': duas expressões que dizem muito sobre o universo ficcional que o escritor russo criou com grande genialidade nos meados do século XIX. Poucos autores foram tão fundo nessa investigação e conseguiram retirar do poço da alma humana tantas desventuras como o fez Dostoiévski. É de se lamentar, por exemplo, o destino do protagonista de Crime e castigo, esse Raskólnikov, um pobre diabo perambulando pelas ruas decadentes de São Petersburgo, com 'o povo se comprimindo entre os andaimes, montes de cal, tijolos espalhados pelos cantos e, dominando tudo, o mau cheiro característico, tão familiar aos habitantes de São Petersburgo, que não dispõem de meio para veranear'.

Dostoiévski conhecia bem a cidade - como também a alma cindida do homem moderno. Ele tinha todas as ruas esquadrinhadas em sua mente, conhecia cada beco, cada travessa, cada ponte sobre o Nievá desde a adolescência. Depois de ter passado a infância entre Moscou e a casa da família na região rural de Darovóie, o menino - impulsionado pelo pai, o doutor Mikhail Andrévich Dostoiévski - seguiu com seu irmão mais velho, Mikhail, para São Petersburgo, onde viveria grande parte de sua vida adulta.

Fiódor Mikháilovitch Dostoiévski - Fiéda, como lhe chamavam - nasceu, em 30 de outubro de 1821, em Moscou. Seu pai era médico no Hospital Marínski para os Pobres, no subúrbio da cidade, e a família morava em um apartamento cujas janelas davam para o pátio do hospital. Conta-se que seu pai vinha de uma nobre família rural lituana; no entanto, o próprio escritor chegou a dizer que não pertencia à pequena nobreza rual, como anota o crítico Joseph Frank em As sementes da revolta, que é o primeiro dos cinco volumes da biografia sobre o autor russo. Era uma maneira de se diferenciar de seu grande rival literário, Tolstói. Para Dostoiévski, o autor de Anna Kariênina descreveu a vida 'tranquila, estável e imutável das famílias dos grandes proprietários dos estratos superiores de Moscou'.

Algumas biografias do escritor costumam retratar a vida familiar dos Dostoiévski como infernal, principalmente por causa da figura austera do pai. Frank coloca em dúvida essa versão, que foi, de certa maneira, divulgada pelo ensaio 'Dostoiévski e o parricídio', de Sigmund Freud, um estudo clássico e muito conhecido sobre o autor de Crime e castigo. Segundo o biógrafo, o psicanalista pode ter forçado a mão ao relacionar esse clima à epilepsia, que acompanhou o autor russo desde a juventude, e aos 'supostos impulsos parricidas de Dostoiévski': 'O artigo de Freud contém algumas observações sobre a personalidade de Dostoiévski, masoquista e dominada pelo sentimento de culpa, mas o caso clínico que ele construiu numa tentativa de explicá-lo em termos psicanalíticos é pura ficção', anota Joseph Frank.

A infância do escritor não foi infernal. Segundo Frank, os pais eram extremamente dedicados aos filhos. Sua mãe, Maria Fiódorovna, foi uma mulher bastante ativa, até que começou a sentir os primeiros sintomas do que mais tarde se revelou ser tuberculose. Ela cuidava da família, apesar de contar com a ajuda de vários empregado, e também gostava de passar longas temporadas com seus oito filhos na casa de campo. Nessas ocasiões, aproveitava para administrar a propriedade, ajudava os camponeses fornecendo-lhes sementes para o plantio e tudo mais que estivesse a seu alcance. E deixava os filhos brincarem livremente. Enquanto isso, o doutor Dostoiévski, assoberbado pelo trabalho, já que também trabalhava em clínicas particulares, nem sempre conseguia acompanhar sua esposa nessas viagens, e permanecia em Moscou.

De fato, ele era um homem severo, sério, e com alguns surtos de irritação - quando, então, estourava -, mas sempre tomando cuidado para que ninguém soubesse, pois se esforçava para manter uma frágil fachada de nobre. Porém, zeloso e preocupado com o futuro de sua prole, acompanhava o estudo de todos eles e chegou a dar aulas de latim para o Mikhail e Fiódor. Os dois temiam essas aulas, pois era quando o pai se mostrava mais severo e muitas vezes se irritava com os erros dos filhos. Dizem que era um homem também muito ciumento: atingiu o máximo do ciúme quando, sem razão, começou a desconfiar que sua mulher o traía em Darovóie. Nessa época, ela estava grávidada irmã caçula do escritor, Aleksandra. Os desentendimentos aumentaram, mas os dois acabaram por se entender, depois de uma sofrida e franca troca de cartas - ambos se expressavam muito bem por escrito - qualidade que seus filhos certamente herdaram.

Diz Joseph Frank que o ganho do pai não era grande coisa, no entanto, ele mantinha certo ar de nobreza. Tinha conseguido um título nobiliárquico de funcionário, mas a vida era puxada. Moravam em um apartamento pequeno para os oito filhos, com divisões internas feitas por biombos, criando assim quartos mínimos. Várvara, a filha mais velha, por exemplo, dormia no sofá da sala, e Fiódor dormia com seu irmão, em um espaço sem nenhuma janela.

Ao chegar à adolescência, o pai decidiu que Mikhail e Fiódor iriam estudar na Academia de Engenharia Militar. Era uma maneira de lhes garantir um futuro. E os dois filhos, que sonhavam com a literatura, e principalmente nutriam a mesma paixão pelo poeta Púchkin, tiveram de se mudar para São Petersburgo. Porém, pouco antes da partida, uma dor os invadiu: Maria Fiódorovna adoeceu gravemente; estava tão fraca que nem conseguia pentear os próprios cabelos. 'Foi o período mais triste de nossa infância', anotou Andrei, um dos irmãos do escritor, em seu livro de memórias. O vínculo emocional de Fiódor com a mãe era tão forte que chegou a perder a voz quando ela morreu. O sintoma só passou quando ele chegou a São Petersburgo, no ano seguinte, em 1838.

Apenas Fiódor conseguiu entrar na Academia; Mikhail não passou nos exames e foi para outra escola. Nessa época, seu pai já não clinicava mais e passara a se dedicar às terras de Darovóie, onde as coisas não iam nada bem, com pouca colheita e, claro, pouco dinheiro. Em 1939, chegou a notícia trágica: o dr. Dostoiévski fora assassinado - fato que abalou a família. Nunca se soube ao certo se houve mesmo um crime, mas, conta Joseph Frank, a maioria dos 'camponeses do sexo masculino da aldeia foi implicada' no suposto assassinato. Há mesmo a suspeira de que ele teria morrido de apoplexia: a tensão na aldeira era grande, com muitos conflitos entre o pai do escritor, seus vizinhos e os camponeses". (DOSTOIÉVSKI, 2010, p. 377-82).


DOSTOIÉVSKI, F. Crime e castigo - Vol. I. Trad. Rosário Fusco. São Paulo, SP: Abril, 2010.

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