segunda-feira, 18 de julho de 2011

A Montanha Mágica, p. 72-3

"Hans Castorp riu-se, cheio de surpresa, e ao mesmo tempo procurou recordar quem eram Minos e Radamanto. Respondeu então:

- Desculpe, mas o senhor está enganado, Sr. Septem...

- Settembrini - corrigiu o italiano com nitidez e presteza, acrescentando uma reverência humorística.

- Sr. Settembrini, perdão! Mas, como já disse, há um equívoco da sua parte. Não estou doente. Faço apenas uma visita de algumas semanas ao meu primo Joachim e quero aproveitar esta ocasião para descansar um pouquinho...

- Vejam só! Então não é dos nossos. Goza boa saúde, está aqui apenas de passagem, como Ulisses no reino das sombras? Que audácia descer até estas profundezas, onde os mortos levam uma existência irreal, desprovida de sentido...

- Até estas profundezas, Sr. Settembrini? Não diga isso, que eu subi uns cinco mil pés para chegar aqui...

- É o que o senhor pensa. Palavra de honra, trata-se apenas de uma ilusão - disse o italiano com um gesto enérgico da mão. - Somos umas criaturas que caíram muito baixo; não é mesmo, tenente? - E com isso se voltou para Joachim, que se regozijou bastante ao ouvir o título, mas, esforçando-se por dissimular a sua satisfação, respondeu circunspectamente:

- Pode ser que a gente se tenha apatetado aqui. Mas, afinal de contas, há meios de se regenerar...

- Pois é, acho também que o senhor tem capacidade para isso; é um homem decente - disse Settembrini. - Sim, sim, sim! - acrescentou, sibilando três vezes o 's' e fazendo estalar a língua outras tantas vezes contra o céu da boca. Depois, dirigindo-se a Hans Castorp, exclamou: - Vejam só, vejam só, vejam só! - com a mesma pronúncia do 's', enquanto encarava o novato com tamanha intensidade, que seus olhos assumiam expressão fixa e cega. Por fim, reavivando o olhar, prosseguiu:

- De modo que o senhor veio voluntariamente a estas alturas, para visitar esta nossa gente decaída! Quer nos conceder por algum tempo o prazer da sua companhia... Ora, é muito gentil da sua parte. E quanto tempo tenciona ficar aqui? Sou indiscreto. Mas eu gostaria de conhecer o prazo que uma pessoa se fixa a si própria, quando se decide livremente, sem depender da vontade de Radamanto.
- Três semanas - respondeu Hans Castorp, com um orgulho um tanto fátuo, ao notar que despertava inveja.

- O Dio! Três semanas! Ouviu, tenente? Não lhe parece mesmo um tanto atrevida essa maneira de dizer: 'Vou passar aqui três semanas e depois partirei'? Fique sabendo, meu senhor, que nós aqui ignoramos uma medida de tempo que se chama semana. Para nós, a menor unidade é o mês. Fazemos as nossas contas em grande estilo, como é o privilégio das sombras. Temos ainda outros privilégios, e todos eles são desse tipo." (MANN, 1952, p. 72-3).


MANN, T. A Montanha Mágica. 1. ed. Trad. Herbert Caro. São Paulo, SP: Círculo do Livro, 1952.

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