quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

A Montanha Mágica, p. 36-7

"Analisadas e resumidas, essas impressões seriam pouco mais ou menos as seguintes: a morte tinha dois aspectos, um piedoso, significativo, de melancólica beleza, quer dizer, um aspecto religioso, e ao mesmo tempo tinha outro, absolutamente diverso e até mesmo oposto, um aspecto muito físico, bem material, que era impossível qualificar propriamente de belo, significativo, piedoso, sequer triste. A natureza solene e religiosa expressava-se no suntuoso ataúde do defunto, na magnificência das flores e no ramo de palmeira, que, como se sabe, simbolizavam a paz celestial; expressava-se além disso, e ainda mais nitidamente, no cruxifixo entre os dedos exangues de quem outrora era o avô, bem como no Cristo abençoador, de Thorwaldsen, que se achava à cabeceira do féretro, e nos dois candelabros que se erguiam de ambos os lados e nessa ocasião haviam assumido um caráter igualmente eclesiástico. Todas essas disposições encontravam evidentemente o seu sentido preciso e próprio na idéia de que o avô se unira para sempre com sua verdadeira e genuína figura. Mas, além dessa razão de ser, existia - como o pequeno Hans Castorp bem notava, ainda que não se desse conta disso em palavras - mais uma outra, uma finalidade mais profana, a manifestar-se em tudo isso, principalmente naquela multidão de flores, e entre elas em especial nas tuberosas espalhadas por toda parte: cabia-lhes disfarçar, fazer esquecer e não admitir ao limiar da consciência o segundo aspecto da morte, que não era nem belo nem realmente triste, mas, a bem dizer, quase indecente e de um caráter baixo e carnal.

Era em virtude desse segundo aspecto que o avô defunto se afigurava tão estranho, que no fundo nem parecia o avô, senão um boneco de cera, de tamanho natural, que a Morte pusera em seu lugar, e ao qual agora se dedicavam todas essas pompas piedosas e reverentes. Quem jazia ali, ou melhor, aquilo que ali se achava estendido, não era portanto o verdadeiro avô; não passava de um invólucro, que - Hans Castorp sabia-o muito bem - não era de cera, mas de sua própria matéria; apenas de matéria, e precisamente nisso residia o indecente e a ausência de tristeza; aquilo era tão pouco triste como são as coisas que dizem respeito ao corpo e só a ele. O pequeno Hans Castorp contemplava essa matéria lisa, cor de cera, de uma consistência caseosa, de que estava feita aquela figura morta de tamanho natural com o rosto e as mãos do ex-avô. Uma mosca acabava de pousar na testa imóvel e começava a mexer a probóscide. O velho Fiete espantou-a cautelosamente, evitando tocar a testa; ao fazê-lo exibia uma fisionomia reservada e pudica, como se não devesse nem quisesse saber do ato que praticava; pudor que sem dúvida se devia ao fato de ser o avô, no atual estado, corpo e nada mais. Mas a mosca deu um vôo circular e aterrissou em seguida nos dedos do avô, perto da cruz de marfim. Enquanto isso sucedia, Hans Castorp percebeu, mais distintamente do que antes, aquela emanação leve, mas de uma persistência singular, e que não lhe era estranha. Por vergonhoso que isso parecesse, lembrava-lhe ela um companheiro de escola, afetado de um mal desagradável e por isso evitado pelos colegas. E Hans Castorp compreendeu que o aroma das tuberosas tinha por objetivo abafar essa emanação, o que não conseguia, apesar da linda exuberância e austeridade." (MANN, 1952, p. 36-7).


MANN, T. A Montanha Mágica. 1. ed. Trad. Herbert Caro. São Paulo, SP: Círculo do Livro, 1952.

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