"Andou pelo campo, sobre prados, pela solidão, e logo o faial, entendendo-se pelas colinas da vizinhança, envolvia-o. Sentava-se no musgo, encostado a uma árvore, de maneira a divisar, entre os troncos, uma faixa do mar que soava como se, ao longe, tábuas caissem umas sobre as outras. Gritos de gralhas nas copas das árvores, roucos, solitários e perdidos... Segurava um livro sobre os joelhos, mas não lia uma linha. Desfrutava um esquecimento profundo, um flutuar desprendido sobre o espaço e o tempo, e só de vez em quando era como se o seu coração fosse transpassado por uma dor, um pesar curto, agudo, de saudade ou arrependimento, sobre cuja designação e procedência ele se sentia demasiado indolente e absorto para indagar." (MANN, 1971, p. 71).
"Meu pai, sabe, era de um temperamento nórdico: considerado, minucioso, correto, por puritanismo inclinado à melancolia; minha mãe, de indistinto sangue exótico, bonita, sensual, ingênua, ao mesmo tempo displicente e apaixonada e de um desmazelo impulsivo.
Sem duvida alguma, foi esta uma mistura que encerrava extraordinárias possibilidades e extraordinários perigos.
O resultado foi este: um burguês que se perdeu na arte, um boêmio que sentia saudades da boa educação, um com a consciência pesada. Pois a minha consciência burguesa é que me faz ver em toda arte, todo extraordinário e todo gênio algo profundamente ambíguo, profundamente difamado, profundamente duvidoso, o que me enche desta amorosa fraqueza para o simples, singelo e agradável anormal, o não-genial e decente.
Estou entre dois mundos; não me sinto à vontade em nenhum dos dois e por isso tenho um pouco de dificuldade. Vocês, artistas, me chamam de burguês, e os burgueses sentem-se tentados a prender-me... não sei qual dos dois me magoa mais. Os burgueses são bobos. Vocês, adoradores da beleza, porém, que me dizem ser eu fleumático e sem saudades, deviam imaginar um dom artístico tão profundo e tão do princípio e do destino, que nenhuma saudade lhe pareça ser mais doce e digna de ser sentida do que aquela pelas delícias da trivialidade.
Admiro os soberbos e frios que se aventuram nos caminhos das grandes, das demoníacas belezas, e desprezam o 'homem' - mas não os invejo. Pois se alguma coisa é capaz de fazer um literato um poeta, então é este meu amor burguês pela humanidade, pela vida e pelas coisas comuns. Todo calor, toda bondade, todo humor vem dele, e quer-me parecer que seja ele aquele amor do qual está escrito que alguém poderia falar com língua humana angelical e, no entanto, sem ele nada mais ser que um bronze soante e guizo sonoro.
O que fiz é nada, não muito, quase nada. Farei coisa melhor, Lisavieta - isto é uma promessa. Enquanto escrevo, o mar murmura até aqui e eu fecho os olhos. Olho para um mundo inato, quimérico, que quer ser ordenado e culto; olho para um formigar de sombras com aspecto humano que acenam para mim, a fim de que as esconjure e liberte: sombras trágicas e cômicas e algumas as duas coisas ao mesmo tempo - e a estas sou muito dedicado. Mas o meu amor mais sentido e secreto pertence aos louros e de olhos azuis aos vivos claros, aos felizes, gentis e comuns.
Não repreenda este amor, Lisavieta; Ele é bom e fértil. Contém saudade e uma inveja melancólica, um pouquinho de desprezo e uma felicidade de absoluta pureza." (MANN, 1971, p. 83-5).
"Meu pai, sabe, era de um temperamento nórdico: considerado, minucioso, correto, por puritanismo inclinado à melancolia; minha mãe, de indistinto sangue exótico, bonita, sensual, ingênua, ao mesmo tempo displicente e apaixonada e de um desmazelo impulsivo.
Sem duvida alguma, foi esta uma mistura que encerrava extraordinárias possibilidades e extraordinários perigos.
O resultado foi este: um burguês que se perdeu na arte, um boêmio que sentia saudades da boa educação, um com a consciência pesada. Pois a minha consciência burguesa é que me faz ver em toda arte, todo extraordinário e todo gênio algo profundamente ambíguo, profundamente difamado, profundamente duvidoso, o que me enche desta amorosa fraqueza para o simples, singelo e agradável anormal, o não-genial e decente.
Estou entre dois mundos; não me sinto à vontade em nenhum dos dois e por isso tenho um pouco de dificuldade. Vocês, artistas, me chamam de burguês, e os burgueses sentem-se tentados a prender-me... não sei qual dos dois me magoa mais. Os burgueses são bobos. Vocês, adoradores da beleza, porém, que me dizem ser eu fleumático e sem saudades, deviam imaginar um dom artístico tão profundo e tão do princípio e do destino, que nenhuma saudade lhe pareça ser mais doce e digna de ser sentida do que aquela pelas delícias da trivialidade.
Admiro os soberbos e frios que se aventuram nos caminhos das grandes, das demoníacas belezas, e desprezam o 'homem' - mas não os invejo. Pois se alguma coisa é capaz de fazer um literato um poeta, então é este meu amor burguês pela humanidade, pela vida e pelas coisas comuns. Todo calor, toda bondade, todo humor vem dele, e quer-me parecer que seja ele aquele amor do qual está escrito que alguém poderia falar com língua humana angelical e, no entanto, sem ele nada mais ser que um bronze soante e guizo sonoro.
O que fiz é nada, não muito, quase nada. Farei coisa melhor, Lisavieta - isto é uma promessa. Enquanto escrevo, o mar murmura até aqui e eu fecho os olhos. Olho para um mundo inato, quimérico, que quer ser ordenado e culto; olho para um formigar de sombras com aspecto humano que acenam para mim, a fim de que as esconjure e liberte: sombras trágicas e cômicas e algumas as duas coisas ao mesmo tempo - e a estas sou muito dedicado. Mas o meu amor mais sentido e secreto pertence aos louros e de olhos azuis aos vivos claros, aos felizes, gentis e comuns.
Não repreenda este amor, Lisavieta; Ele é bom e fértil. Contém saudade e uma inveja melancólica, um pouquinho de desprezo e uma felicidade de absoluta pureza." (MANN, 1971, p. 83-5).
MANN, T. Tonio Kröger - Morte em Veneza. 1. ed. São Paulo, SP: Editora Abril, 1971.
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