sábado, 15 de janeiro de 2011

Tonio Kröger, p. 43-5

"- Olhe para mim. Não estou com bom aspecto, não lhe parece? Um pouco velho, as linhas do rosto marcadas, um pouco cansado, não é verdade? Então, para voltar ao 'reconhecimento', assim se poderia imaginar um homem que, de nascença crente, meigo, benévolo e um pouco sentimental, seria simplesmente aniquilado pela clarividência psicológica. Não se deixar vencer pela tristeza do mundo; observar, perceber, mesmo a maior angústia, e estar de bom humor, sentindo-se absolutamente elevado sobre a abominável invenção do ser - sim, certamente! No entanto, apesar de todos os regozijos da expressão, a coisa toma conta de você. Tudo compreender quer dizer tudo perdoar? Não sei ao certo. Existe algo que eu chamo de nojo do conhecimento, Lisavieta. O estado no qual basta a um homem penetrar uma coisa para se sentir enojado a ponto de querer morrer (e sem nenhuma disposição para perdoar) é o caso de Hamlet, do dinamarquês, desse literato típico. Ele sabia o que era isto: ser destinado ao conhecimento sem ter nascido para isso. Divisar, ainda através do véu de lágrimas do sentimento, reconhecer, perceber, observar e, sorrindo, ter que por de lado o que observou, ainda no momento em que as mãos se entrelaçam, os lábios se encontram, onde o olhar humano, cego pela sensação, se quebra - é infame, Lisavieta, é vil, é revoltante... mas de que adianta revoltar-se? Um outro lado da coisa, não menos delicado, é o fastio, a indiferença e o cansaço irônico contra toda a verdade; é um fato que em nenhuma parte do mundo sucede ser tão calado e sem esperança quanto no círculo de gente de espírito que já está calejado. Todo o conhecimento é velho e monótono. Diga uma verdade, pela conquista e posse da qual você sente uma espécie de alegria juvenil, e sua ilustração ordinária será respondida por um curtíssimo desprendimento de ar pelo nariz... Ah! sim, a literatura cansa, Lisavieta! Numa sociedade humana pode acontecer que - isto lhe garanto -, de tanto ceticismo e abstinência de opinião, se seja considerado tolo, quando se é nada mais que orgulhoso e sem coragem... Isto, quanto ao 'reconhecimento'. Porém, quanto à 'palavra', talvez aí se trate menos de uma libertação do que de uma conservação e congelação do sentimento. Falando sério, há uma circuntância gélida e revoltante presumida com esta conclusão rápida e supérflua do sentimento. Se o seu coração está cheio, se se sente demasiadamente emocionada com um acontecimento doce e elevado, nada mais simples! Vá a um literato e tudo será resolvido no menos espaço de tempo. Ele analisará e formulará o seu assunto, dar-lhe-á um nome, expressá-lo-á e fará com que lhe diga algo. Vai resolver e tornar tudo indiferente para você, por todo o tempo, e não aceitará agradecimentos. Você, porém, vai para casa aliviada, refrescada e esclarecida, e vai cismar o que havia no assunto, ainda há pouco, que podia, num tão doce tumulto, perturbá-la. E quer defender seriamente este frio charlatão? O que é expresso, assim reza o seu credo, está acabado. Se o mundo todo for expressado, então está acabado, libertado, posto de lado... Muito bem. Porém, eu não sou niilista..." (MANN, 1971, p. 43-5).


MANN, T. Tonio Kröger - Morte em Veneza. 1. ed. São Paulo, SP: Editora Abril, 1971.

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