sábado, 15 de janeiro de 2011

Tonio Kröger, p. 45-6

"- Veja, o literato, no fundo, não compreende que a vida pode continuar a viver, que não se envergonha disto, depois de, afinal, ter sido expressada e 'terminada'. Mas veja só, apesar de toda libertação, continua pecando sem parar, através da literatura; pois toda ação é pecado aos olhos do espírito. Cheguei ao termo, Lisavieta. Ouça-me. Amo a vida - isto é uma confissão. Aceite-a e guarde-a - eu nunca a fiz a ninguém. Disseram, escreveram mesmo e fizeram imprimir que odeio, ou temo, ou desprezo, ou detesto a vida. Gostei de ouvi-lo, lisonjeou-me; mas nem por isso é menos falso. Amo a vida...

Você sorri, Lisavieta, e sei a respeito de quê. Mas eu lhe imploro, não tome por literatura o que diz aí! Não pense em César Bórgia ou alguma filosofia ébria, que o ergueu sobre um pedestal! Nada significa para mim, a este César Bórgia não lhe dou o mínimo valor e jamais compreenderei como se pode venerar como ideal o extraordinário e o demoníaco. Não, a 'vida', como se apresenta em eterno contraste ao espírito e à arte - não como visão de grandeza sangrenta e beleza selvagem, não como o extraordinário se apresenta a nós, extraordinários; porém, a normalidade, o decoro, a amabilidade é o reino de nossas saudades, é a vida na sua tentadora banalidade! Longe está de ser um artista, minha querida, cuja última e mais profunda exaltação é o requinte, o excêntrico, o satânico, que não conhece a saudade pelo inofensivo, simples e vivo, por um pouco de amizade, dedicação, intimidade e felicidade humana - a saudade secreta e consumidora, Lisavieta, pelas delícias do trivial!" (MANN, 1971, p. 45-6).


"- É absurdo amar-se a vida e no entanto empenhar todos os artifícios em puxá-la para o nosso lado, conquistá-la para as sutilezas e melancolias e toda a doentia nobreza da literatura. O reino da arte cresce e o da saúde e inocência drecresce sobre a terra. O que ainda sobra disto devia ser conservado com o maior zêlo, e não se deve seduzir para a poesia aqueles que preferem ler livros sobre cavalos, com ilustrações! Por que afinal - que espetáculo seria mais lastimável do que o da vida quando tenta a arte?" (MANN, 1971, p. 46).


MANN, T. Tonio Kröger - Morte em Veneza. 1. ed. São Paulo, SP: Editora Abril, 1971.

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